Sobre reconexões e a minha experiência com o Yoga

As figuras do cartaz “Yoguinis” (Jamile Ansolin e Inês Pilla), com a primeira série da prática Ashtanga Vinyasa Yoga, lembram hieróglifos, os caracteres usados como escrita no Egito Antigo. A comparação me pareceu interessante – pelo que evoca sobre descobertas e reconexões – para ilustrar esse texto que é um relato de uma experiência e também um agradecimento.  

Há pouco mais de um ano comecei a praticar Yoga e queria deixar aqui um breve relato dessa experiência. É um relato de agradecimento, para várias pessoas, e de apropriação, para mim mesmo, do sentido dessa experiência. As portas do Yoga me foram abertas pela Jessica Homem, nas aulas de Yoga aéreo que ela conduziu por alguns meses na Arthemysa. O que iniciou motivado pela curiosidade  e pelo cansaço das práticas já automatizas e irrefletidas da academia de musculação, virou rapidamente descoberta e reencontro com momentos e experiências que me foram muito caros ao longo da vida. Yoga é reconexão e essa reconexão pode se dar em vários sentidos. Para mim, o sentido que mais me tocou foi a reconexão comigo mesmo e com esses momentos. Alguém escreveu: o espaço do tapetinho te oferece a possibilidade de construir uma melhor versão de ti mesmo.

Quis a vida que essa experiência caísse em meio à pandemia do novo coronavírus que, de certo modo, nos lançou para outra dimensão de vida. Isso vem sendo vivido de maneiras diferentes. Para muita gente, de uma maneira trágica, com perda de vidas, de parentes, amigos, colegas, afetos, trabalhos, rendas, empregos e perspectivas. Essa dimensão trágica, agravada pelo fato de termos um sociopata genocida na presidência da República (para economizar os adjetivos), trouxe uma dificuldade adicional para a prática do Yoga: uma espécie de sentimento de culpa por ter essa oportunidade no momento em que milhões de pessoas tinham muito menos e carências gigantescas. Mas decidi continuar mesmo assim, mesmo com esse sentimento de culpa, porque o sentimento de que deveria seguir neste caminho foi mais forte. Não me arrependi.

Não foi fácil essa caminhada até aqui. Alguns meses depois de começar a praticar, essa caminhada migrou para o plano virtual, o que envolveu e segue envolvendo toda uma reeducação de percepção tanto para quem pratica como para quem conduz a prática. Foram dezenas de aulas online, muitas delas em manhãs geladas desse inverno que foi rigoroso. Os problemas de conexão foram o de menos. No meu caso, o maior problema foi a necessidade de abrir espaço mental, em meio ao caótico e desgastante trabalho como jornalista, trabalhando em casa, em meio a uma pandemia e a uma conjuntura de violência, violação de direitos, intolerância, ódio e obscurantismo. No meio disso, em determinado momento, era preciso virar a chave, abrir outro espaço. Mas aos poucos fui me dando conta de que o Yoga é sobre isso também: abrir espaços (físicos e mentais) para você aprender a andar com equilíbrio mesmo em meio ao caos. . Isso tudo não para uma iluminação ou uma salvação individual no meio do caos, mas sim para abrir espaços, construir alinhamentos, ampliar a consciência de si mesmo e da nossa relação e responsabilidade com os demais seres e a vida.

Essas foram algumas coisas que (acho) que aprendi (ou tomo como minhas lições preferidas) em um ano de Yoga.

A prática do Yoga me reconectou com meu corpo (ou talvez seja mais apropriado dizer, com a consciência do próprio corpo), me reconectou com temas que me interessaram durante a minha formação em Filosofia e mesmo antes disso. Reconectou-me ainda com temas que pretendo tornar mais presentes em meu trabalho jornalístico, em um momento onde todas as formas de vida do planeta estão sob ataque de um sistema econômico suicida. Ainda nesse terreno, fortaleceu novas conexões, como a percepção de uma unidade (que ainda deve ser construída) entre direitos humanos, direitos animais e direitos da Terra.

Você ouve uma coisa o tempo todo, quando começa a praticar: Yoga não se resume aos asanas (as posições que a gente faz nas práticas), embora seja o que a gente acaba fazendo a maior parte do tempo. Na verdade, os próprios asanas não são apenas asanas (o que não é um detalhe e indica a existências de mundos a descobrir por meio da relação entre corpo, consciência e mundo exterior).

Ganhar consciência do próprio corpo não é apenas um processo físico, mas também de autoconhecimento, de conhecimento de partes de você que, até então, eram completamente desconhecidas e alheias, como se fossem externas à própria existência. O mesmo se aplica ao ato de respirar. É incrível, mas podemos viver uma vida inteira sem, verdadeiramente, respirar …

Ficar em posições invertidas ou com o joelho enrolado no pescoço pode ser legal (ou nem tanto), mas não é o mais importante. Esse “não é o mais importante”, por outro lado, não significa que seja algo desimportante, pois pode ser o caminho de descobertas e saberes sobre si mesmo, seus limites e possibilidades.

Foco no presente, na ação presente, cultivar a paz, o equilíbrio e a gentileza na relação com os demais seres e buscar construir a melhor versão de si mesmo em cima do tapete e dar vida a ela fora do tapete. Esse é o meu balanço da minha experiência com o Yoga até aqui.

Por fim, gostaria de expressar um agradecimento especial a quem ajudou a orientar essa caminhada até aqui, com aulas e ensinamentos presenciais e virtuais (e segue orientando): Jessica Homem, Jamile Ansolin e o Bijam, Carol Gaiger, Tini Kruger, Rafael Leite, Francine Varela e Paula Bastos.

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Há um grande pesadelo por trás da ideia de um ‘novo normal’, diz antropólogo

Ao longo dos últimos meses, a pandemia do novo coronavírus deu lugar, entre outras coisas, ao desenvolvimento de um novo vocabulário que procura ressignificar palavras já conhecidas. O surgimento de uma espécie de “novo normal”, em função dos impactos da pandemia de covid-19 em nossas vidas, designa uma dessas expressões. Mas o que seria exatamente esse “novo normal”, considerando a realidade que estamos vivendo hoje. Para Jean Segata, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), há um pesadelo por trás dessa ideia, um pesadelo que se expressa pela naturalização de processos destrutivos da vida no planeta, pela absorção da vida privada pelas relações de trabalho e pela transformação da rua e do espaço público em um território cada vez mais hostil que será habitado fundamentalmente pelas pessoas que não podem trabalhar em casa.

Em entrevista ao Sul21, Jean Segata fala sobre os impactos da pandemia em nossas vidas, em especial quanto ao modo como estamos nos relacionando com o meio ambiente, com os animais e as demais formas de vida do planeta. Coordenador da Rede Covid-19 Humanidades (que reúne pesquisadores da UFRGS, Fiocruz, UFSC, UNIDAVI, UFRN, Unicamp e UnB), Jean Segata vê a pandemia mais como “um sintoma de algo que é muito maior e que se chama capitalismo”.

“Essa é a verdadeira enfermidade que tem adoecido todos nós, que tem corroído nossos corpos e que se corporifica em relações de trabalho cada vez mais precarizadas, colocando a vida das pessoas cada vez mais no limite. Além disso, ela se manifesta em formas de exploração de ambientes e de animais cada vez mais comoditizadas e transformadas em partes de um processo industrial de larga escala que não está assumindo suas responsabilidades pelo que está acontecendo no planeta”, afirma o antropólogo.

A ideia de um “novo normal” causa arrepios a Segata. “Novo normal talvez seja uma maneira de dizer que esses processos cada vez mais destrutivos da vida serão naturalizados. Talvez esse “novo normal” seja uma maneira de dizer que daqui em diante essa necropolítica que estamos vivendo será naturalizada, como os mais de 140 mil mortos que já temos no Brasil. Talvez as pessoas aceitem pensar que esse é um custo necessário para a vida de outros.”

Para ele, o modelo de “home office” aponta outro aspecto de um pesadelo que está virando realidade. “Já vivemos um trabalho que é quase onipresente. Nosso espaço e nosso tempo privado foram engolidos pelas relações de trabalho. Respondemos email fora do horário de trabalho, o celular fica vibrando no nosso bolso, avisando de alguma reunião. Essas reuniões de home office tomam o nosso tempo, algumas vezes, para além dos limites da jornada de trabalho. Temos sobreposições de tempo e um adoecimento do nosso tempo e espaço privados. Me preocupa que esse seja o novo normal”, diz ainda Segata.

Sul21 – Que lições já podemos tirar da pandemia de covid-19 no campo da saúde, em especial no tema das percepções envolvidas na elaboração de políticas públicas de saúde?

Jean Segata: Uma questão importante que a gente precisa ter em mente para responder a essa pergunta é entender o que é mesmo uma pandemia. É um termo que vem da epidemiologia e que indica uma determinada situação. Mas, ao mesmo tempo, é um conceito que tem uma certa dimensão abstrata. Uma pandemia designa um estado no qual há muitos surtos acontecendo em diversos lugares ao mesmo tempo, com diferentes intensidades, singularidades e agravamentos. Esses agravamentos não dependem exclusivamente da dinâmica do vírus ou da sua capacidade patogênica. Eles também dependem de questões culturais, sociais e econômicas.

Uma coisa é olhar para uma pandemia se manifestando em um país como o Brasil, onde a vida já é levada no limite, onde as pessoas vivem numa situação de precariedade, com pouca proteção social. Elas não tem o direito de preservar suas vidas, fazendo um isolamento, precisando se expor à rua, utilizando ônibus e trens para ir ao trabalho e enfrentando grandes aglomerações. Temos aí um agravante de natureza econômica. Essas pessoas precisam trabalhar e, muitas vezes, acabam se expondo a situações que não são as mais adequadas em termos de saúde. Temos vários exemplos disso perto de nós. O Rio Grande do Sul foi um dos estados onde um setor que foi convertido em serviço essencial, nos frigoríficos da indústria da carne, se tornou um ambiente altamente contaminante. Isso ocorreu não porque, necessariamente, os vírus venham da carne, mas sim porque esse ambiente favorece a contaminação. Esses trabalhadores não têm muita alternativa e precisam seguir trabalhando para manter suas vidas.

Podemos pensar também em condicionantes sociais e políticos. Não temos um ministro da Saúde, temos um presidente que advoga contra a ciência e que defende o uso de cloroquina para o tratamento da covid-19, em um flagrante descaminho em relação às orientações técnicas de saúde. Tudo isso embaralha as noções de cuidado de si que as pessoas têm e também de cuidado coletivo. Isso também complexifica as noções que as pessoas têm de risco e assim por diante. Também é preciso levar em consideração as inúmeras questões culturais que dizem respeito ao cuidado e ao risco, que não são necessariamente aquelas trazidas pelo escopo da ciência, mas que são práticas culturalmente situadas que não deixam de ser relevantes para a vida das pessoas.

Sul21: Em que sentido, mais precisamente, esses condicionantes influenciam ou deveriam influenciar a construção de políticas na área da saúde?

Jean Segata: Quando formos pensar na construção de políticas públicas de saúde é preciso levar em conta essas singularidades que cada região, que cada grupo mais ou menos cultural e socialmente definido tem do que é saúde e doença. Por exemplo, como é que vamos pensar numa política pública abrangente de saúde numa cidade como Porto Alegre se temos comunidades que não são abastecidas por água e que não podem sequer lavar as mãos para atender as medidas mais básicas de saúde, como é o caso de uma boa higienização das mãos. Álcool gel, máscaras ou até mesmo sabonetes são itens de luxo em várias cestas básicas. Precisamos pensar em políticas públicas que atendam, de uma forma mais orgânica, essas diversas experiências de saúde e de doença.

As pandemias revelam o quanto, às vezes, é muito fácil ficarmos suscetíveis a um processo de colonização de pensamento e de modelos globais de saúde, que, quase sempre, são modelos de países do norte, que não enxergam os diferentes tipos de vulnerabilidade que temos em países como o Brasil. São políticas globais de saúde que não enxergam as particularidades sociais, culturais e históricas que certos países têm. É neste sentido que precisamos ficar atentos a políticas que venham de baixo para cima, que venham do chão e tenham a participação efetiva das pessoas na sua elaboração e não só as pessoas responderam a elas passivamente porque elas vêm prontas de cima pra baixo.

Mais uma vez fica claro que precisamos pensar em políticas que sejam negociadas, constituídas e trabalhadas a partir também de experiências singulares, de experiências comunitárias, e que não façam simplesmente um processo de homogeneização sobre o que é saúde, do que é cuidado e do que é risco.

Sul21 – Que lições já podemos tirar da pandemia de covid-19 no campo da saúde, em especial no tema das percepções envolvidas na elaboração de políticas públicas de saúde?

Jean Segata: Uma questão importante que a gente precisa ter em mente para responder a essa pergunta é entender o que é mesmo uma pandemia. É um termo que vem da epidemiologia e que indica uma determinada situação. Mas, ao mesmo tempo, é um conceito que tem uma certa dimensão abstrata. Uma pandemia designa um estado no qual há muitos surtos acontecendo em diversos lugares ao mesmo tempo, com diferentes intensidades, singularidades e agravamentos. Esses agravamentos não dependem exclusivamente da dinâmica do vírus ou da sua capacidade patogênica. Eles também dependem de questões culturais, sociais e econômicas.

Uma coisa é olhar para uma pandemia se manifestando em um país como o Brasil, onde a vida já é levada no limite, onde as pessoas vivem numa situação de precariedade, com pouca proteção social. Elas não tem o direito de preservar suas vidas, fazendo um isolamento, precisando se expor à rua, utilizando ônibus e trens para ir ao trabalho e enfrentando grandes aglomerações. Temos aí um agravante de natureza econômica. Essas pessoas precisam trabalhar e, muitas vezes, acabam se expondo a situações que não são as mais adequadas em termos de saúde. Temos vários exemplos disso perto de nós. O Rio Grande do Sul foi um dos estados onde um setor que foi convertido em serviço essencial, nos frigoríficos da indústria da carne, se tornou um ambiente altamente contaminante. Isso ocorreu não porque, necessariamente, os vírus venham da carne, mas sim porque esse ambiente favorece a contaminação. Esses trabalhadores não têm muita alternativa e precisam seguir trabalhando para manter suas vidas.

Podemos pensar também em condicionantes sociais e políticos. Não temos um ministro da Saúde, temos um presidente que advoga contra a ciência e que defende o uso de cloroquina para o tratamento da covid-19, em um flagrante descaminho em relação às orientações técnicas de saúde. Tudo isso embaralha as noções de cuidado de si que as pessoas têm e também de cuidado coletivo. Isso também complexifica as noções que as pessoas têm de risco e assim por diante. Também é preciso levar em consideração as inúmeras questões culturais que dizem respeito ao cuidado e ao risco, que não são necessariamente aquelas trazidas pelo escopo da ciência, mas que são práticas culturalmente situadas que não deixam de ser relevantes para a vida das pessoas.

Sul21: Em que sentido, mais precisamente, esses condicionantes influenciam ou deveriam influenciar a construção de políticas na área da saúde?

Jean Segata: Quando formos pensar na construção de políticas públicas de saúde é preciso levar em conta essas singularidades que cada região, que cada grupo mais ou menos cultural e socialmente definido tem do que é saúde e doença. Por exemplo, como é que vamos pensar numa política pública abrangente de saúde numa cidade como Porto Alegre se temos comunidades que não são abastecidas por água e que não podem sequer lavar as mãos para atender as medidas mais básicas de saúde, como é o caso de uma boa higienização das mãos. Álcool gel, máscaras ou até mesmo sabonetes são itens de luxo em várias cestas básicas. Precisamos pensar em políticas públicas que atendam, de uma forma mais orgânica, essas diversas experiências de saúde e de doença.

As pandemias revelam o quanto, às vezes, é muito fácil ficarmos suscetíveis a um processo de colonização de pensamento e de modelos globais de saúde, que, quase sempre, são modelos de países do norte, que não enxergam os diferentes tipos de vulnerabilidade que temos em países como o Brasil. São políticas globais de saúde que não enxergam as particularidades sociais, culturais e históricas que certos países têm. É neste sentido que precisamos ficar atentos a políticas que venham de baixo para cima, que venham do chão e tenham a participação efetiva das pessoas na sua elaboração e não só as pessoas responderam a elas passivamente porque elas vêm prontas de cima pra baixo.

Mais uma vez fica claro que precisamos pensar em políticas que sejam negociadas, constituídas e trabalhadas a partir também de experiências singulares, de experiências comunitárias, e que não façam simplesmente um processo de homogeneização sobre o que é saúde, do que é cuidado e do que é risco.

Há um pesquisador chamado Rob Wallace, que tem falado muito sobre o quanto nos últimos 25 ou 30 anos muitas dessas pandemias, como H1N1, gripe suína, SARS ou gripe aviária, tiveram origem em regiões onde mais se intensificou a criação de animais, como é o caso das grandes corporações da indústria norte-americana de suínos, com as suas granjas instaladas no México. Foi de lá que saiu a gripe suína. O sul da China é quase sempre acusado de ser um lugar de onde emergem vírus, patógenos e a próxima pandemia. Isso cria muitas vezes situações estigmatizantes em relação ao povo chinês. Fala-se de vírus chinês e essas populações acabam sendo alvo de xenofobia e estigmatização. Mas esquece-se de falar mais precisamente da localização da origem dos problemas. Esses vírus estão saindo principalmente dos arredores ou de dentro das indústrias de frango e de patos que se instalaram nestas regiões do sul da China.

Precisamos começar a responsabilizar essas grandes corporações que estão destruindo ambientes e mudando significativamente paisagens que reúnem diversas espécies, criando um desequilíbrio ambiental sem precedentes. Também precisamos ficar atentos ao papel da engenharia genética nestes processos. O capitalismo começou a se tornar destrutivo quando converteu o que a gente chamava de natureza em matéria prima e mercadoria. Agora temos um problema que é intensificado pela engenharia genética. Não se trata mais só de converter um animal ou uma planta em uma matéria-prima e mercadoria. A engenharia genética tem ajudado a otimizar essa natureza. Se, antes, você simplesmente convertia um frango em mercadoria, agora você produz um frango que não é mais um frango. É um pedaço de carne criado em 27 dias, facilitado por tecnologias genéticas. Você não tem mais um milho que você colhe, mas um milho que vai nascer em qualquer época do ano e em qualquer clima, porque você suplanta os mecanismos naturais de adaptação climática. Nós não temos pensado sobre as conseqüências dessa “otimização” da natureza.

O capitalismo é uma doença que se manifesta em nossos corpos. Ele se corporifica no motorista de Uber que precisa trabalhar 15 horas por dia pra poder pagar o MEI , no entregador de aplicativo que tem que pedalar quilômetros por dia, em um trânsito super-hostil, porque ele ganha cinco reais por entrega, quando ganha isso. Precisamos prestar atenção em quanto essas paisagens doentias, sejam elas do mundo do trabalho ou da natureza. Se olharmos bem o que vivemos neste período de isolamento, a gente vê que viveu um isolamento de classe média alta branca de centros urbanos. Pobres e negros são considerados trabalho essencial, mão-de-obra essencial e, por isso, não tem o direito de preservar sua saúde e precisam expor os seus corpos para sustentar a manutenção de outros corpos. Então, o que temos é uma profunda relação de desigualdade com outros humanos, com animais não humanos e com o ambiente. Tudo isso está ligado a uma doença que a gente conhece há muito mais tempo e o nome dela é capitalismo.

Sul21: Muito tem se falado sobre um suposto “novo normal” no pós-pandemia. Em que medida, na sua opinião, podemos falar da perspectiva de vivermos uma espécie de nova normalidade em um período pós-pandemia? O que significa essa formulação exatamente?

Jean Segata: Eu tenho um certo arrepio em relação a isso. “Novo normal” talvez seja uma maneira de dizer que esses processos cada vez mais destrutivos da vida serão naturalizados. Talvez esse “novo normal” seja uma maneira de dizer que daqui em diante essa necropolítica que estamos vivendo será naturalizada, como os mais de 140 mil mortos que já temos no Brasil. Talvez as pessoas aceitem pensar que esse é um custo necessário para a vida de outros. Esse, para mim, é o grande pesadelo que está por trás dessa idéia de novo normal. As pessoas que enunciam isso não enxergam nestas mortes histórias de vidas, histórias de famílias, trajetórias, sonhos e desejo de viver. Elas enxergam um número apenas, uma perda necessária, um custo necessário, que muitas vezes é intangível, para que a vida dos outros continue existindo.

Tenho um certo pavor de pensar que isso seja o novo normal. Tenho um certo pavor também de pensar outras coisas, como a normalização desse modelo home office no qual estamos trabalhando hoje. Eu me sinto um privilegiado. Estou dando as minhas aulas na universidade a partir da minha casa, participo das reuniões aqui da minha casa e as minhas filhas podem ter aulas online. Mas eu sei que isso está longe de ser, não vou dizer nem a média, mas a realidade da maioria das pessoas. É uma minoria que tem condições de fazer isso e precisamos não normalizar esse tipo de situação. A gente precisa destacar que isso coloca em relevo o sistema extremamente desigual no qual vivemos.

A antropóloga Teresa Caldeira escreveu muito sobre a emergência dos condomínios privados nos anos oitenta. Ela tem um livro muito interessante chamado “Cidade de Muros” , no qual desenvolve o argumento de que esses condomínios privados correspondiam a certos privilégios em termos de lazer e de segurança, e, à medida que essas fortalezas foram crescendo nas beiras das grandes cidades, o espaço público foi se tornando cada vez mais hostil. Os equipamentos públicos de lazer foram ficando cada vez mais depredados ou inexistentes, as praças públicas foram ficando depredadas, esquecidas ou simplesmente tomadas por empreendimentos imobiliários. A rua foi ficando hostil. Me preocupa o quanto essa “homeofficezação” das relações de trabalho, da escola e da universidade não pode se normalizar e fazer com que a rua se torne mais hostil ainda, virando uma paisagem tipo Mad Max, lembrando o filme que surgiu nos anos oitenta. Virando uma espécie de território sem lei, a rua como o lugar só para quem precisa sair de casa para trabalhar. Quem puder, vai trabalhar dentro de casa, no conforto do seu lar.

E nem podemos falar de conforto, exatamente, porque essa “homeofficezação” também é outra precarização. Eu não sei o quanto as grandes corporações não vão começar a tirar vantagem disso. Devem estar pensando: por que vamos um alugar um prédio inteiro de escritórios no Moinhos de Vento ou na Avenida Paulista se podemos manter essas pessoas em casa e poupar esse dinheiro. Podem dar um subsídio para a internet ou nem isso, porque se elas não quiserem outros vão querer trabalhar. Elas que arquem com os custos de seu próprio trabalho, com internet, com a organização das agendas, talvez com a destruição de relações familiares.

Sul21: Quais situações exatamente podem levar a essa destruição de relações familiares e pessoais?

Jean Segata: Eu tenho filhas pequenas e as crianças querem brincar, querem correr dentro de casa. É a nossa casa, o nosso espaço privado. Eu, particularmente, tento me isolar para fazer as minhas atividades, de modo a deixar que elas toquem sua vida normal, com suas brincadeiras e seu espaço lúdico. Mas sabemos que nem todo mundo pode ter esse espaço privado dentro de casa. A maioria não tem. E o que vão ter que fazer? Acabam pedindo para que os filhos façam silêncio ou, talvez, os colocam dentro de um quarto, limitando o espaço privado e as nossas liberdades individuais cada vez mais. O espaço que antes era privado virou um espaço público de trabalho. Na minha câmera aqui aparece quem está andando dentro de casa, a minha estante, a minha vida privada. A vida privada foi engolida pelo universo do trabalho, pelas relações de trabalho.

Já vivemos um trabalho que é quase onipresente. Respondemos email fora do horário de trabalho, o celular fica vibrando no nosso bolso, avisando de alguma reunião. Essas reuniões de home office tomam o nosso tempo, algumas vezes, para além dos limites da jornada de trabalho. Temos sobreposições de tempo e um adoecimento do nosso tempo e espaço privados. Me preocupa que esse seja o novo normal. Me preocupa que o novo normal seja converter o planeta em uma grande granja de porcos, que a gente transforme a nossa paisagem em uma grande lavoura de soja transgênica, ou que transformemos as pessoas pobres e negras em corpos cada vez mais expostos a situações contaminantes e hostis. Me preocupa ainda o quanto a gente pode adoecer com essas relações que embaralham vida privada e profissional, tempo privado e tempo profissional, que tudo isso seja misturado e convertido em horas de produção. Me preocupa o quanto esse capitalismo, que já é uma doença crônica, torne-se uma enfermidade cada vez mais aguda e que leve vidas embora cada vez mais, sejam vidas humanas, sejam vidas de animais ou a vida em geral deste planeta que nunca foi tão destruída.

(*) Publicado originalmente no Sul21 (em 3 de outubro de 2020)

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Conselheiros da UFRGS questionam medidas de Bulhões e convocam reunião extraordinária

Conselho Universitário é o órgão máximo, normativo e deliberativo, da UFRGS. Foto: Luiza Castro/Sul21

Um grupo de mais de 50 conselheiros e conselheiras (entre titulares e suplentes) do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) encaminhou um requerimento à presidência do órgão convocando uma reunião extraordinária do CONSUN para o dia 5 de outubro, às 9 horas, para debater as medidas de reestruturação da Universidade anunciadas por Carlos Bulhões, novo reitor indicado pelo presidente Jair Bolsonaro. No entendimento dos signatários do requerimento, essas medidas ferem dispositivos previstos no Estatuto e no Regimento Geral da UFRGS, além de decisões aprovadas anteriormente pelo Conselho Universitário. Os conselheiros e conselheiras que estão convocando a reunião extraordinária representam diversos segmentos da comunidade universitária, incluindo professores, diretores de unidades, funcionários técnico-administrativo e estudantes.

O objetivo da reunião é colocar em pauta a reforma da estrutura dos órgãos que compõem a Reitoria, implementada pelo novo reitor nomeado sem passar pelo CONSUN. O documento assinala que o Conselho Universitário é o “órgão máximo, normativo, deliberativo e de planejamento nos planos acadêmico, administrativo, financeiro, patrimonial e disciplinar da universidade”. Além disso, acrescenta, é a instância competente para “aprovar a criação, modificação e extinção de funções e órgãos administrativos”, bem como “aprovar, por pelo menos dois terços da totalidade de seus membros, a criação, incorporação e extinção de órgãos” na universidade.

O Conselho Universitário é o “órgão máximo de função normativa, deliberativa e de planejamento da Universidade nos planos acadêmico, administrativo, financeiro, patrimonial e disciplinar, tendo sua composição, competências e funcionamento definidos no Estatuto e no Regimento Geral da UFRGS”.

Carlos Bulhões, terceiro colocado na eleição realizada pela comunidade universitária em julho deste ano para escolher o novo reitor da UFRGS, foi indicado pelo presidente Jair Bolsonaro e tomou posse dia 21 de setembro prometendo uma gestão marcada “por muito diálogo e algumas modificações estratégicas na estrutura organizacional”. Essas “modificações estratégicas na estrutura organizacional”, no entanto, não foram debatidas previamente pelo Conselho Universitário.

As entidades representativas de professores, estudantes e funcionários técnico-administrativos rejeitaram a indicação de Bulhões, considerando-a uma intervenção do governo federal que desrespeita o princípio da autonomia universitária previsto na Constituição. Para a ADUFRGS Sindical, “alem de desrespeitar a vontade da maioria da comunidade acadêmica e do seu Conselho Universitário, a escolha abala os princípios do Estado de Direito Democrático, ferindo, sobremaneira, o projeto de Universidade Pública estabelecido nos marcos constitucionais”.

A ASSUFRGS (Sindicato dos Técnico-Administrativos da UFRGS, UFCSPA e IFRS) também repudiou a nomeação de Bulhões definindo-a como uma intervenção na universidade que representa “o avanço dos projetos privatistas e de cortes na educação pública no âmbito da universidade”.

O Diretório Central de Estudantes (DCE), juntamente com centros acadêmicos e diretórios acadêmicos da universidade, já organizou dois atos de protesto contra a nomeação, o segundo deles no dia em que Bulhões tomou posse, em uma cerimônia fechada no gabinete da Reitoria. A coordenação do DCE já manifestou preocupação com algumas das medidas já anunciadas pelo novo reitor, como a criação da Pró-Reitoria de Inovação e Assuntos Institucionais, que, na avaliação da entidade, é uma porta aberta para o avanço do processo de privatização dentro da universidade.

(*) Publicado originalmente no Sul21 (28 de setembro de 2020)

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Bulhões assume reitoria da UFRGS em posse ‘silenciosa’ em meio a protesto de estudantes

Estudantes realizaram segundo ato contra a nomeação de Bulhões para reitor da UFRGS. Foto: Luiza Castro/Sul21

Estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul realizaram um novo protesto, na manhã desta segunda-feira (21), contra a indicação, pelo presidente Jair Bolsonaro, do professor Carlos Bulhões, terceiro colocado na eleição realizada pela comunidade universitária, para ser o novo reitor da UFRGS. Convocado pelo Diretório Central de Estudantes (DCE) e por diretórios e centros acadêmicos da universidade, o ato iniciou em frente à Faculdade de Educação e depois se dirigiu em caminhada para a frente da Reitoria da UFRGS. Além do uso obrigatório de máscaras, a organização do ato marcou espaços no chão com a letra “x” para lembrar a necessidade de garantir um mínimo distanciamento durante a manifestação.

As palavras de ordem cantadas durante a manifestação expressavam a contrariedade dos estudantes com a indicação feita por Bolsonaro: “Mas que vergonha, que vergonha deve ser, precisar do Bibo Nunes pra poder se eleger”, “Não vai ter arrego, nomeia interventor e a gente tira teu sossego”, “Tira a caneta da mão, tira a caneta da mão, que não vai ter intervenção”, “Não, não à intervenção, eles querem ditadura, a gente quer educação”, “Alô Bulhões, interventor, aqui na UFRGS tu não pode ser reitor”.

Carlos Bulhões e a vice-reitora Patrícia Pranke foram empossados no gabinete da Reitoria.(Divulgação)

Desde o início da manhã, os estudantes tentaram confirmar a informação de que Bulhões estaria no prédio da Reitoria para uma reunião ou mesmo para já ser empossado. A Reitoria não informou nada a respeito. O único contato que os estudantes conseguiram foi uma rápida conversa com seguranças da Reitoria que não confirmaram a presença de Bulhões no prédio. Mas Bulhões estava lá sendo empossado em uma rápida e silenciosa reunião de gabinete. Um pouco antes do meio-dia, os estudantes realizaram uma plenária na calçada em frente à Reitoria para debater os próximos passos da mobilização em defesa da autonomia universitária e contra o que consideram uma inaceitável intervenção do governo Bolsonaro na UFRGS. Durante toda a plenária, eles não sabiam que o novo reitor já havia sido empossado.

Por volta das 15h, o site da UFRGS publicou uma nota anunciando que a posse do novo reitor indicado por Bolsonaro, de fato, ocorreu na manhã desta segunda-feira, enquanto o protesto dos estudantes acontecia no Campus Central. A página institucional informou:

“Na manhã desta segunda-feira, dia 21 de setembro, o professor Carlos André Bulhões foi empossado no cargo de reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para o período de 2020 a 2024. Entre as primeiras providências estão os atos normativos necessários para que a Universidade siga suas rotinas de forma tranquila, com toda a responsabilidade e excelência que caracterizam a instituição. O termo de posse da nova vice-reitora, professora Patricia Pranke, será efetivado no dia 29 de setembro, conforme orientação do Ministério da Educação”.

Segundo Bulhões, o início dos trabalhos da nova gestão será marcado “por muito diálogo e algumas modificações estratégicas na estrutura organizacional”. “Com o objetivo de reafirmar a excelência do serviço público prestado pela UFRGS, a modernização estará focada na formação dos estudantes, na produção de conhecimento e na integração com a sociedade”, acrescentou.

Estudantes saíram em caminhada da Faculdade de Educação até a Reitoria. Foto: Luiza Castro/Sul21

Representantes do DCE, de diretórios e centros acadêmicos defenderam a realização de plenárias por cursos, nas diversas unidades da UFRGS, nas próximas semanas, para retomar a organização e a mobilização dos estudantes que também acabou interrompida pela pandemia do novo coronavírus. Nos próximos dias, as entidades estudantis se reunirão para definir os próximos passos do movimento que pretende aprofundar a mobilização contra a intervenção por toda a universidade.

Ana Paula Santos, coordenadora do DCE, destacou que a comunidade universitária já manifestou grande rejeição à indicação de Bulhões que está se manifestando também nas redes sociais. “Mais do que a questão de não respeitar a ordem da lista tríplice, o tema central é o que Bulhões representa. No nosso entendimento, alguém que seja nomeado por Bolsonaro vai trabalhar para consolidar o projeto que o atual presidente representa e executa, de desmonte e ataque à universidade pública, de negação do valor da ciência e da pesquisa científica. Isso é o que mais nos preocupa”.

Após o anúncio da posse de Bulhões, na metade da tarde, Ana Paula Santos lamentou o modo como se deu a posse e  disse que a mobilização dos estudantes vai continuar e que a nova gestão já começa marcada pela falta de transparência e de diálogo. “Recebemos a informação de que ele chegou muito cedo e entrou por um local ao qual não temos acesso”, assinalou a estudante. A coordenadora do DCE também manifestou preocupação com algumas das medidas já anunciadas pelo novo reitor como a criação da Pró-Reitoria de Inovação e Assuntos Institucionais que, para ela, é uma porta aberta para o avanço do processo de privatização dentro da universidade, nos moldes do que estava planejado no projeto apresentado pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub.

(*) Publicado originalmente no Sul21 (21 de setembro de 2020)

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A saúde humana e a vida dos animais

Foto: Ministério Público da 4ª Região/ Divulgação

No dia 30 de janeiro deste ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o surto de uma nova cepa de coronavírus, que eclodiu na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China, como uma emergência de saúde pública de importância internacional. No dia 11 de março, a emergência foi declarada pela OMS como uma pandemia. De março para cá, todos vivemos uma realidade com a qual ninguém sonhava nos primeiros dias do ano.

Há um elemento, na pandemia do novo coronavírus que estamos vivendo, que não se resume a um problema de saúde, entidade como bem-estar físico individual ou ausência de doenças em nossos organismos. Pesquisadores de diferentes áreas têm chamado a atenção para o fato de que não podemos mais tratar a saúde humana dissociada da nossa relação com o meio ambiente e, mais particularmente, com os animais. E isso não se limita ao fato de que frigoríficos têm sido, no Brasil e em vários outros países, focos de contágio e propagação da Covid-19.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Jean Segata é um desses pesquisadores que defende a necessidade de um olhar mais amplo para avaliar o tema da saúde na era das pandemias. Coordenador do Núcleo de Estudos Animais, Ambientes e Tecnologias (NEAAT) do Pós-Graduação em Antropologia Social da Ufrgs, Jean Segata defende que é preciso pensar as injustiças da nossa relação com os animais e o ambiente que nos cerca. Doença da vaca louca, gripe aviária, gripe suína, Covid-19… As duas primeiras décadas do século 21 foram marcadas, entre outras coisas, pela eclosão de doenças e epidemias, cuja origem está diretamente relacionada ao modo como nos relacionamos com os animais – e como os consumimos também.

A relação entre humanos, animais e ambiente é um tema central das pesquisas do antropólogo, que trabalha com a perspectiva de não separar a saúde humana da saúde animal e da saúde do meio ambiente. Ele pensa a saúde – e também a doença – como algo que é compartilhado por humanos, animais e ambientes, como ocorre também com a doença. Jean Segata alerta para os riscos do excepcionalismo humano, da ideia que a natureza é algo externo do qual temos que nos proteger e que, ao mesmo tempo, nos damos o direito de utilizar como recurso.

Na mesma linha, a filósofa Lori Gruen, professora na Wesleyan University (EUA), assinala no início de seu livro, Entangled Empathy: an alternative ethic four our relationships with animals (Lantern Books, Nova York, 2015), que os cientistas estimam hoje que entre 150 e 200 espécies de vida estão sendo extintas a cada dia, um processo de extinção de espécies sem precedente e mais rápido do que qualquer outro desde a extinção dos dinossauros. A situação para outros animais, acrescenta, é ainda pior: “Cerca de 100 bilhões de animais, incluindo aí animais marinhos, são mortos anualmente para a alimentação humana. E cerca de 115 milhões de animais são usados em experimentos laboratoriais a cada ano”. Além disso, acrescenta, atividades humanas como queimadas, desmatamentos, extração florestal e mineral estão destruindo o habitat de milhões de animais.

Para enfrentar esse cenário crescente de destruição ambiental e vidas humanas e não humanas, Lori Gruen trabalha com a ideia de “empatia emaranhada”, “um tipo de percepção de cuidado focado em atender à experiência de bem-estar do outro; um processo experiencial que envolve uma mistura de emoção e cognição, no qual reconhecemos que estamos em relacionamentos com outros seres e somos chamados a ser responsivos e responsáveis nessas relações”.

As ideias de Lori Gruen adquirem um sentido de urgência especial no Brasil, na medida em que estamos sendo governados justamente pelo oposto do que ela propõe: a ausência de empatia tornou-se uma espécie de política governamental no Brasil. Milhares de mortes humanas são tratadas como uma fatalidade inevitável, a Floresta Amazônica e o Pantanal estão sendo devastados pelo fogo, pelo desmatamento e pela mineração. Milhares de animais estão morrendo queimados. Além das outras dimensões da crise que atravessamos, há uma crise de percepção sobre a gravidade e a dramaticidade do que está ocorrendo. O Brasil tornou-se um território de destruição da vida em geral e da falta de empatia. O mundo inteiro está vendo o que está acontecendo e nós também. E daí?

(*) Publicado originalmente no jornal Extra-Classe (21 de setembro de 2020).

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“Brasil nunca viveu crise tão grave e profunda. Precisamos de um novo projeto de país”, diz João Pedro Stédile

Para João Pedro Stédile, problemas não serão resolvidos apenas com uma eleição. (Reprodução/Sul21)

“Todos que acompanham a nossa história, inclusive alguns militares, avaliam que o país vive a sua pior crise, desde que passaram a nos chamar de Brasil. Nestes 500 anos, nunca houve uma crise tão grave e tão profunda. Estamos enfrentando, na verdade, uma confluências de crises que mexe com as estruturas da nossa sociedade”. A avaliação é de João Pedro Stédile, da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que participou nesta sexta-feira (18) de uma live com jornalistas da redação do Sul21. A conversa de uma hora analisou o atual momento político brasileiro e as implicações dessa confluência de crises para a vida do povo brasileiro.

Para Stédile, a crise que o Brasil está enfrentando é uma crise do próprio modo de produção capitalista e não apenas de alguns setores da economia. Neste cenário, assinalou, as grandes empresas, os bancos e as corporações transnacionais podem até seguir mantendo lucros estratosféricos, porém, o modo de organizar a produção não consegue resolver mais as necessidades fundamentais da população brasileira, que é garantir trabalho, alimentação, moradia, terra, renda, saúde e educação. “É um sistema anacrônico que já não projeta soluções para o futuro. Teremos que pensar um novo modo de organizar a produção. Tudo isso tem repercussões gravíssimas na sociedade, se expressando como crise social”, assinalou.

O dirigente do MST lembrou que 44 bilionários brasileiros tiveram um lucro extraordinário de R$ 180 bilhões durante a pandemia, além do que as empresas deles já acumulavam. Do outro lado, ressaltou, temos 65 milhões de brasileiros fazendo fila na Caixa Econômica Federal para pegar 600 reais, que agora o governo quer reduzir para trezentos. “A sociedade brasileira virou isso. De um lado 44 bilionários, do outro 65 milhões de adultos, chefes de família, que têm que mendigar seiscentos reais para não passar fome”.

“Todos os biomas do Brasil estão pegando fogo”

A segunda dimensão da crise, destacou João Pedro Stédile, é ambiental que aparece nos fenômenos conjunturais que a imprensa vem relatando, como as mudanças climáticas e as queimadas. “Todos os biomas do Brasil estão pegando fogo. Temos 29 mil casos de queimadas na Amazônia, detectados pelos satélites do INPE. Estamos com o Pantanal queimando, o bioma mais úmido que nós temos. É como se a caixa d’água de uma casa pegasse fogo. Vocês conseguem imaginar isso? Pois é o que está acontecendo. No Cerrado, embora menos divulgado, também estão ocorrendo queimadas. O cultivo de soja acabou com a biodiversidade do Cerrado. E aqui no Pampa também temos notícias de queimadas”.

Outro aspecto dessa crise ambiental, disse ainda Stédile, é que as empresas, em tempo de crise, exploram com muito mais ganância os bens da natureza, seja a terra, florestas, água, minérios ou o pré-sal, para se apropriar desses bens de forma privada e trazê-los para o mercado. “Neste movimento, de transformar um bem da natureza em mercadoria, eles conseguem lucros extraordinários. A Nestlé, por exemplo, na indústria de laticínios, tem uma taxa de lucro média de 13% por ano, que é a taxa média de lucro dos capitalistas industriais. Mas quando ela vai lá no sul de Minas, pega água e transforma em mercadoria, o custo dela é basicamente o transporte e o plástico, o que garante uma taxa média de lucro de 400%.

A terceira dimensão da crise, na avaliação do dirigente do MST, é a crise do Estado burguês, que representa algo mais do que crises institucionais eventuais. “Quem manda agora é a burguesa financeira e para eles é muito mais conveniente comprar candidatos do que disputar ideias nas eleições, mas isso traz uma contradição, que é a descrença do povo nos políticos. Há uma crise de legitimidade. Eles podem até se eleger, mas o povo não acredita neles. Veja o que está acontecendo agora. Os dois governadores que se elegeram com maior apoio popular, no Rio de Janeiro e em Santa Catarina, vão perder o mandato antes de completar dois anos no governo. Cadê o povo que os elegeu? Não está nem aí.”.

Em quarto lugar, Stédile também identificou uma dimensão ideológica na crise. Durante todo o neoliberalismo (um período de 30 anos), observou, ficaram martelando na cabeça da juventude que só é feliz quem consome, quem vai no shopping Center, quem tem o tênis e o celular da moda. Esse discurso, porém, gerou uma contradição, apontou. “Esses falsos valores do consumismo, do egoísmo e do individualismo, são antissociais. A sociedade precisa resolver seus problemas de forma coletiva. A felicidade é coletiva”. Stédile resumiu essa questão citando uma frase de José Martí: Só é possível ser feliz ajudando os outros. “Isso pode ser a síntese dos Evangelhos ou de qualquer corrente filosófica. Você quer ser feliz? Então ajude o próximo. Só assim vai conseguir se realizar como ser humano. A lógica do neoliberalismo e do capitalismo é o contrario disso: massacre o próximo, pise no próximo”. (veja abaixo a íntegra da conversa com João Pedro Stédile)

Essa confluência de crises no Brasil, observou Stédile, se agravou com a pandemia de covid-19 e com o governo Bolsonaro. Para ele, a grave crise de saúde pública provocada pelo novo coronavírus poderia ter sido evitada. Ele citou o exemplo de países como Vietnã, com apenas 35 mortes por covid-19 até aqui, de Cuba, com pouco mais de 90 mortes até aqui, e da Indonésia que, com cerca de 280 milhões de habitantes, teve até aqui algo em torno de 3.500 mortes pela covid. “Nós estamos vivendo essa tragédia social, com mais de 130 mil mortes e vai seguir aumentando, pois ainda estamos no platô. Isso porque não houve medidas de controle do governo”.

Temos um governo, acrescentou, que se elegeu pelas fake news e adota um método fascista de governar. Stédile definiu assim esse método: “O método adotado por Bolsonaro e a turma dele é pregar o ódio o tempo todo. É ódio ao diferente. Eles têm ódio ao negro, aos homoafetivos, a tudo que seja diferente deles. O diferente é transformado em inimigo. Isso é uma loucura. Numa sociedade tão plural quanto a nossa a diversidade é uma riqueza e um valor. Para eles, ser diferente é ser inimigo e aos inimigos o fascismo prega a eliminação. Você pode eliminar moralmente o inimigo com uma falsa propaganda, ou você pode eliminar o inimigo prendendo ele, como fizeram com Lula, ou chegam mesmo à eliminação física, como fizeram com a Marielle, que ganharia as eleições para o Senado, no lugar do Flávio. Também mataram o Adriano, numa queima de arquivo. Como ele era só miliciano, poderia abrir o bico quando fosse preso. Essa é a gravidade da crise na qual estamos metidos no Brasil”.

“Precisamos propor um projeto de país que seja pós-capitalista”

Diante desse cenário, Stédile disse que os caminhos para a esquerda brasileira não são fáceis nem podem ser tirados de manuais. “Precisamos construir um novo projeto de país. Não é apenas uma disputa eleitoral. Precisamos encontrar respostas para esses dilemas que a crise do capitalismo trouxe. O próprio modelo que Lula e Dilma adotaram, de neodesenvolvimentismo, foi para outro estágio, anterior a essa crise que estamos enfrentando. Essa crise é tão profunda que nos obriga a refletir e propor um projeto de país que seja pós-capitalista. Esses mecanismos que estão aí, da lógica capitalista do mercado, não resolvem os problemas que estamos pela frente. Não resolve sequer o problema da saúde”.

Esse novo projeto e as mudanças necessárias, defendeu ainda Stédile, terão um longo tempo de transição. “Nós vamos resolver essa crise com uma eleição. Isso não se resolve em 2022, ainda que tenhamos que nos esforçar para que Lula recupere seus direitos. Mesmo que Lula ganhe as eleições em 2022, não está resolvida a crise. Precisamos nos preparar para um período longo de transição. Neste contexto, a tarefa principal da esquerda é organizar o povo, é fazer trabalho de base com o povo, é debater um projeto de país com a população. Neste trabalho de organização, a esquerda ainda está com a boca torta da época do capitalismo industrial. As formas clássicas de organização que tínhamos no capitalismo industrial, de movimentos (como é o MST), sindicatos, associações de bairro e partidos, embora ainda sejam importantes, são insuficientes para organizar aqueles 65 milhões que fizeram fila na Caixa.”

Para o dirigente do MST, no meio desse povo, as mulheres aparecem como um protagonista central e representam o segmento da classe trabalhadora mais agredido pela crise. Outros segmentos que têm um protagonismo central são a juventude da periferia e, em particular, os negros. “O Marighella já tinha cantado essa pedra. Ele disse que se houver uma revolução no Brasil ela será negra e mestiça”. As lideranças populares que temos hoje, que vêm do período anterior, tem uma responsabilidade, concluiu. “Elas precisam trabalhar com essa unidade de um projeto maior e não ficar se disputando eleitoralmente. Fomentando e organizando essa luta de massas certamente vão emergir novos lideres populares que hoje não conhecemos, como vimos acontecer agora com as duas greves dos entregadores de aplicativos”.

(*) Publicado originalmente no Sul21 (18 de setembro de 2020)

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MST anuncia que manterá arroz orgânico a um preço justo

Foto: Tiago Giannichini/Divulgação

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), maior produtor de arroz orgânico da América Latina, anunciou que o produto cultivado nos assentamentos no Rio Grande do Sul seguirá sendo vendido a um preço justo à população, no momento em que as grandes empresas que controlam o comércio estão aumentando os preços. Só na última safra foram colhidas 15 mil toneladas de arroz orgânico, sendo que várias destas foram destinadas para doações desde o início da pandemia do novo coronavírus. Participam da produção do alimento 364 famílias, de 14 assentamentos, situadas em 11 municípios gaúchos.

Segundo o MST, neste contexto de pandemia, os pilares que guiam os assentados e acampados são as doação de suas produções e o plantio de árvores. O Movimento afirma que esta é a forma que os Sem Terra encontraram de seguir lutando, contra o desmatamento, o alto índice de agrotóxico liberado pelo atual governo, a fome e a crise sanitária que tão fortemente atinge os brasileiros.  “Nós temos a agroecologia que nos guia. Ou seja, preservamos o meio ambiente, nosso solo, a nossa água, pois sabemos que somos passageiros, e que a próxima geração também precisa dessa terra”, diz Emerson Giacomelli, da direção da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap). “Valorizamos toda  a cadeia produtiva. Ou seja, quem produz, beneficia, transporta, revende até chegar no consumidor com um preço que seja possível adquirir”, acrescenta Giacomelli.

Conforme Giuliano Ferronato, diretor de operações da Corretora Mercado, filiada a Bolsa Brasileira de Mercadorias o principal fator que levou a alta dos preços do arroz foi a exportação. “O arroz brasileiro no mercado internacional estava muito mais barato do que de outros países”, afirma. Ele ainda menciona, que somente neste ano, o Brasil exportou 1 milhão e 100 mil toneladas de arroz, um aumento de 20% em relação ao ano passado.

O governo brasileiro não tem nenhum controle sobre o comércio de arroz para fora do país na exportação do alimento. “Não tem uma taxação desse produto quando é destinado para exportação, e importação ele tem sim. Hoje o arroz fora do bloco Mercosul é taxado em 12% em casca”, pontua Ferronato.

Segundo Nilton Cesar de Oliveira, técnico do Instituto Rio Grandense do Arroz (IRGA) outro fator que contribui é a falta de estoque regulador do governo, e com isso o aumento da exportação do arroz, impactando no estoque.

Confira locais de venda do arroz orgânico do MST pelo país:

Loja da Reforma Agrária (15)  | Mercado Público – Porto Alegre 

Fone: 51 999814837 | 51 30234057

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Facebook – Loja da Reforma Agrária

Cootap | Eldorado do Sul – RS

Fone: 51 3181-0305

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Instagram – @terralivreagroecologica

Facebook – Terra Livre Agroecológica

E-mail: vendas@cootap.com.br  | comercial@cootap.com.br

Coopan | Nova Santa Rita – RS

E-mail: coopan@coopan.com.br

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Facebook – Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita

Coopat | Tapes – RS

Fone: (51) 9994-6162 | 51 9559-5616

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Facebook – Coopat

Email: sac@coopat.com.br

Armazém do Campo São Paulo 

Fone: (11) 3333 0652

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Instagram – @armazemdocampo.sp

Facebook – Armazém Do Campo Produtos Da Terra

Email: armazemdocamposp@gmail.com

Armazém do Campo Rio de Janeiro 

Fone: (21) 99702 9303

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Facebook – Armazém do Campo – RJ

Armazém do Campo Recife 

Fone: (81) 99673 4327

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Instagram – @armazemdocamporecife

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Armazem do Campo Belo Horizonte

Email: armazemdocampobh@gmail.com

Fone: (31) 99244 5378

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São Luís- Maranhão 

Fone: (98) 99229 0032

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Facebook – Solar Cultural da Terra Maria Firmina dos Reis

(*) Com informações da Página do MST

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Biotecnologia, prevenção e vacina: as armas de Cuba para enfrentar a covid-19, sob bloqueio dos EUA

nterferon Alpha 2B é um dos 22 medicamentos produzidos pela Biocubafarma para o enfrentamento da Covid-19. (Foto: Ariel Cecilio Lemus/Divulgação)

A chegada da pandemia do novo coronavírus a Cuba coincidiu com a decisão do governo Donald Trump de recrudescer as medidas de bloqueio que os Estados Unidos impõem há quase 60 anos contra o país. Entre outras medidas, os EUA proibiram pelo menos 20 voos que levavam suprimentos e equipamentos para Cuba, incluindo aí máscaras de proteção, kit para testes de covid-19, respiradores e insumos químicos necessários para a produção de equipamentos. Agora, no início de setembro, Trump anunciou a prorrogação das medidas de bloqueio por mais um ano. Para enfrentar situações de crise como essa, em meio à escassez provocada pelo cerco que os EUA mantém desde a Revolução Cubana, o governo cubano adotou uma série de medidas que incluem a adoção de políticas de medicina preventiva, de distanciamento social e de desenvolvimento de medicamentos e de uma vacina própria por meio de seus centros de pesquisa e de produção na área da saúde e da biotecnologia.

Produtos biofármacos como Heberon, Heberferon, Jusvinza e Itolizumab, entre outros, vem contribuindo para a diminuição de pacientes graves e críticos e para a redução da taxa mortalidade (para 0,8/100.000), uma taxa aproximadamente dez vezes menor do que a média mundial. A Biocubafarma garante hoje a produção de 22 medicamentos para o tratamento do Covid-19.  Um deles é o Interferon Alfa humano recombinante 2B que, junto com um grupo de medicamentos, faz parte do protocolo de enfrentamento da covid-19 e de complicações inflamatórias decorrentes da doença

No dia 11 de setembro, Cuba registrava 4.593 diagnosticados com a covid-19, dos quais 3.844 já recuperados, 641 em tratamento e 106 óbitos, um dos mais baixos índices de mortalidade do mundo (oito mortes para cada milhão de habitantes). Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), até o início de setembro, o maior índice de mortalidade era o do Peru, com 871 mortes por milhão de habitantes.

Segundo Luís Herrera Martinez, assessor científico da presidência da BioCubaFarma, as políticas adotadas pelo governo cubano para enfrentar o novo coronavírus basearam-se, entre outras coisas, na avaliação de que não estamos lidando com um fato exclusivamente sanitário e sem conseqüências futuras para o mundo inteiro, em diferentes dimensões. Para resumir a natureza dessas medidas, ele cita um artigo publicado na Revista Anais, Academia de Ciências de Cuba, onde presidente Miguel Diaz-Canel Bermúdez e o professor Jorge Nuñez Jover, presidente da Cátedra Ciência, Tecnologia e Sociedade, na Universidade de Havana, que contextualiza as escolhas feitas pelo governo cubano no cenário de uma economia mundial ainda dominada por políticas neoliberais. No artigo intitulado “Gestión gubernamental y ciencia cubana en el enfrentamiento a la COVID-19”, eles sustentam que o novo coronavírus mostrou que esse modelo neoliberal é totalmente incapaz de dar conta dos múltiplos desafios colocados por uma pandemia como essa que o mundo enfrenta agora.

Com 35 anos de vida, a indústria biofarmacêutica cubana foi criada por Fidel Castro que sempre viu o setor como estratégico para o país. (Divulgação)

Eles questionam: a que se deve o fato de que países com economias solventes e capacidades científicas e tecnológicas consideráveis tenham demonstrado tantas dificuldades para enfrentar a crise? Os dogmas do neoliberalismo e suas políticas associadas são capazes de lidar com os complexos processos ambientais, sanitários, econômicos e de governança global que o mundo está enfrentando? Entre esses processos, Diaz-Canel e Jorge Jover destacam algumas tendências globais que só vem se acentuando. O mundo assiste a uma pressão crescente sobre os limites planetários para a vida. Com isso se elevam a taxa e a escala de problemas e desastres ambientais e sociais. Convergem aí múltiplas crises: sanitárias, ambientais, desigualdade e exclusão social, entre outras. Cada país e região – e também em nível global – tem que aprender a lidar com sistemas complexos (envolvendo não linearidade, irreversibilidade, fortes interconexões, emergências inesperadas e incertezas) que demandam abordagens interdisciplinares e exigem colaboração intersetorial, interinstitucional e também transnacional. Tudo o que o Brasil não vem fazendo, cabe assinalar.

Na avaliação do governo cubano, a crise atual é sanitária, mas também socioeconômica e humanitária, e não pode ser enfrentada com dogmas neoliberais como Estado mínimo, privatizações, desregulação, desnacionalização, visão do mercado como panacéia, destruição de bens comuns e desmonte de políticas públicas e do Estado como um todo. Para Cuba, há várias pandemias em curso, que incluem também a pobreza e a fome: “A pandemia agudiza problemas de um planeta marcado por profundas desigualdades, onde 600 milhões de pessoas vivem em situação de extrema pobreza e onde quase a metade da população não tem acesso a serviços básicos de saúde”, resume ainda o artigo, apontando os graves erros das políticas neoliberais nos últimos quatro meses que levaram à redução da capacidade de gestão e de enfrentamento da crise pelos Estados.

A chegada do coronavírus e o aumento do bloqueio dos EUA

O primeiro caso de covid-19 foi detectado em Cuba no dia 11 de março de 2020. As primeiras medidas, porém, para o enfrentamento do novo coronavírus, começaram a ser tomadas no final de janeiro, quando o Conselho de Ministros aprovou um Plano para a prevenção e Controle do Coronavírus. No dia 3 de fevereiro, começou a primeira etapa de capacitação de profissionais da saúde e servidores de outras áreas do Estado em temas de biosegurança. Ainda no mês de fevereiro, foram criados o Grupo de Ciência para o Enfrentamento da Covid-19 , o Observatório de Saúde Covid-19 e o Comitê de Inovação. No dia 28 de fevereiro, foram aprovados os primeiros cinco projetos de pesquisa para a covid-19. No dia 1o de junho, já havia 460 pesquisas em curso no país.

Produção do do Interferon Alfa 2B Humano Recombinante. (Foto: Ricardo López Hevia/Granma)

Cuba enfrentou um desafio adicional para implementar essas medidas, destaca ainda Luís Herrera Martínez. Meses antes do surgimento da pandemia da covid-19, o país enfrentou o recrudescimento da política de bloqueio econômico, comercial e financeiro implementada pelos Estados Unidos, dirigida a estrangular o comércio do país, o acesso aos combustíveis e a divisas internacionais. A combinação do recrudescimento do bloqueio com a pandemia do novo coronavírus representou um duro teste para o sistema de saúde e para a estrutura científica cubana. “A obra de anos dedicando recursos para desenvolver e fortalecer a saúde e a ciência foi posta à prova, e a evolução da pandemia em Cuba nos últimos meses está demonstrando o quanto podem impactar as políticas de investimento social no enfrentamento dos maiores e inesperados desafios”, diz o presidente Miguel Diaz-Canel Bermúdez.

Cuba destina 27,5% de seu orçamento para saúde e assistência social

Mesmo em meio ao bloqueio promovido pelos Estados Unidos nas últimas seis décadas, Cuba desenvolveu durante as últimas décadas uma política de saúde pública, universal e gratuita. O país dedica 27,5% de seu orçamento para gastos e investimentos em saúde e assistência social. Um dos instrumentos mais importantes dessa política é o sistema de atenção básica, cuja proximidade com as comunidades favorece o intercâmbio direto com a população, permitindo uma resposta rápida em caso de eventos adversos como o do pandemia da covid-19. Outra peça importante do sistema de saúde cubano é a indústria médico-farmacêutica que, em uma situação de escassez de recursos, combina ciência avançada e inovações criativas que dão ao país “um nível razoável de soberania tecnológica no setor da saúde”.

Mesmo com as dificuldades de recursos impostas pelo bloqueio dos EUA, Cuba não abre mão também da cooperação internacional e mantém cerca de 28 mil profissionais de saúde em 59 países. Hoje, 34 brigadas médicas cubanas, integradas por mais de 2.500 profissionais, estão atuando em 26 países, a pedido de seus governos, para mitigar os impactos da pandemia.

O governo cubano implementou um conjunto de ações para enfrentar a chegada da covid-19 na ilha. Entre elas, destacam-se: desenvolvimento de modelos matemáticos para o prognóstico, enfrentamento e avaliação da progressão da pandemia; sistema de geolocalização aplicado à gestão epidemiológica; adoção de escala de classificação de pacientes graves; estudo de biomarcadores da severidade da enfermidade; criação de mapas das áreas de risco com a identificação dos grupos de risco envolvendo pessoas com mais de 60 anos, em nível nacional; produção de meios de proteção para os profissionais da saúde; desenvolvimento de protótipos de ventiladores pulmonares de emergência; desenvolvimento de uma lâmpada de descontaminação com luz ultravioleta; uso de técnicas de big data para avaliar a mobilidade da população durante a pandemia; desenvolvimento de cinco candidatas vacinais cubanas; aplicação do anticorpo monoclonal Anti-CD6, do peptídeo CIGB258 e do Heberferón em pacientes com a covid-19, entre outras.

Os produtos biotecnológicos cubanos evitaram consideravelmente a morte de pacientes críticos e graves, conseguindo salvar cerca de 80 % deles, enquanto no mundo cerca de 80% deles morrem, afirmam ainda Miguel Diaz-Canel e Jorge Jover que destacam a contribuição da biotecnologia cubana ao combate contra a covid-19 tanto com o anticorpo monoclonal Anti-CD6 quanto com o peptídeo CIGB-258, desenvolvido pelo Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia.

Hoje, 34 brigadas médicas cubanas, integradas por mais de 2.500 profissionais, estão atuando em 26 países no enfrentamento da covid-19. (Foto: Endrys Correa Vaillant/Granma)

Outro elemento da política cubana para enfrentar a pandemia é a participação da população na implementação das medidas adotadas pelo governo. Na avaliação do representante da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) em Cuba, José Moyá, no território cubano, a comunicação do governo com a população desempenhou um papel muito importante, para que todos se mantivessem informados sobre a evolução da pandemia dentro e fora do país. Moyá elogiou as medidas adotadas por Cuba desde o início da pandemia, como o isolamento de casos suspeitos e de viajantes que regressavam do exterior, alem do fechamento de escolas e universidades. Alem disso, destacou o distanciamento social adotado e a adesão da população a ele como chave na batalha para enfrentar o novo coronavírus.

O papel da indústria biofarmacêutica

O papel da indústria biofarmacêutica cubana é um capítulo a parte no processo de enfrentamento da pandemia. Luis Herrera Martinez é um dos autores de um artigo “A indústria biofarmacêutica cubana no combate contra a pandemia da covid-19”, que sistematizou o que foi feito até aqui. Essa indústria garantiu o fornecimento de medicamentos do protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde Pública, segundo o qual vários produtos em fase de desenvolvimento foram reposicionados para sua utilização na covid-19. Assim, biofármacos como Nasalferon, Biomodulina T e Hebertrans foram utilizados para a prevenção da infecção pelo vírus em grupos de risco; Heberon e Heberferon foram administrados como tratamentos antivirais, enquanto Jusvinza e Itolizumab foram usado para deter a reação hiperinflamatória. Esses produtos, destaca Luis Herrera, contribuíram para a diminuição de pacientes graves e críticos (em menos de 7%) e para a redução da taxa mortalidade (para 0,8/100.000), uma taxa aproximadamente dez vezes menor do que a média mundial.

Com 35 anos de vida, a indústria biofarmacêutica cubana tem 35 anos de vida. Foi criada por Fidel Castro que sempre viu o setor como estratégico para o país. Sob bloqueio dos EUA, Cuba desenvolveu um modelo próprio de ciência e inovação, obtendo resultados reconhecidos pela comunidade internacional. Em 1965, foi criado o Centro Nacional de Investigações Científicas (CNIC), que reuniu cientistas com a responsabilidade de criar outras instituições, a maior parte delas relacionadas com a saúde humana e animal. A década de 1980 assistiu a um boom da biotecnologia em Cuba com a criação da Frente Biológica, do Centro de Investigações Biológicas, em 1982, do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia, em 1986, do Centro de Imunoensaio, em 1987, e outras instituições que constituíram, em 1992, o Pólo Científico de Havana, que passou a abrigar mais de 10 mil trabalhadores.

Em 2012, essas instituições se fundiram com as empresas da indústria farmacêutica, dando origem à organização empresarial BioCubaFarma, que abriga hoje 32 empresas, fornece mais 800 produtos ao sistema de saúde, possui 182 objetos de patente, realiza com seus produtos mais de 100 ensaios clínicos simultâneos em 200 sítios clínicos e exporta seus produtos para mais de 50 países.

Vacina Soberana 01 é a primeira desenvolvida por um país da América Latina a entrar na segunda fase de testes. (Foto: Cubadebate)

A vacina Soberana 01

 No dia 24 de agosto, a vacina Soberana 01 entrou em fase de testes clínicos em humanos, convertendo-se na primeira da América Latina a avançar para essa segunda fase. A OMS tem registradas, hoje, 167 vacinas potenciais contra a covid-19. A Soberana 01 é uma das 29 que a Organização Mundial da Saúde já aprovou para testes clínicos. Seis delas estão na fase 3, que envolve a testagem em humanos em grande escala. Na América Latina, há outras vacinas sendo desenvolvidas, mas a cubana é a única que já avançou para a fase dois. Nesta fase, a vacina será testada em 676 pessoas, entre 19 e 80 anos. A previsão é de que os resultados sejam divulgados no dia 1o de fevereiro de 2021.

 As autoridades médicas de Cuba esperam cumprir todas as etapas de teste para que a vacina Soberana 01 seja aprovada e esteja disponível para os 11 milhões de cubanos a partir de fevereiro de 2021 (ver vídeo abaixo). Além disso, com o apoio da Organização Panamericana de Saúde, pretende disponibilizar a vacina também para outros países da região. Das onze vacinas que integram o programa nacional de imunização, Cuba produz oito delas. Esse programa tem uma cobertura superior a 98% e a vacinação é gratuita e universal.

Seis meses depois da confirmação dos primeiros casos de covid-19 na ilha, o governo cubano decidiu estender, até o final de setembro, um conjunto de medidas restritivas de circulação (de pessoas e de veículos) em Havana em função de um aumento do numero de casos que começou a se manifestar desde o final de julho. Segundo Reinaldo García Zapata, governador de Havana, as medidas são necessárias para conter o risco de propagação da epidemia pela cidade e outros municípios da região.

(*) Publicado originalmente no Sul21 (12/09/2020)

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Reitoria da UFRGS: O que está em jogo é a democracia!

Foto: Luiza Castro/Sul21

Maria do Rosário (*)

É grave a informação que circula pelas redes com o anúncio do nome, que de forma autoritária, teria sido escolhido para a Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É um triste retrato do momento que vivemos hoje no Brasil, e mais uma cena dessa distopia nunca antes vivida em nossa história. Nem mesmo na ditadura a educação pública foi tão atacada como acontece hoje.

As universidades e Institutos Federais são consideradas pelo governo federal, inimigas do país. No último ano, Bolsonaro atacou a autonomia das instituições federais de ensino superior com o Future-se, com a MP 914 e por seis vezes interferiu na escolha dos dirigentes das instituições federais de ensino. Em 2020 não está sendo diferente. O atual ocupante do Planalto já nomeou interventor e tentou interferir novamente na autonomia das universidades com a MP 979. Em contraponto, a UFRGS, que construiu seu processo de consulta à comunidade e permitiu a expressão de docentes, discentes e técnicos sobre o futuro da instituição, agora está sob ameaça. Setores sem compromisso com a democracia se movimentam para que o terceiro colocado na eleição seja indicado à Reitoria.

A legitimidade é aliada da democracia. O respeito à autonomia da universidade e à comunidade devem prevalecer. Para fazer a gestão de uma instituição é necessário governabilidade, e sem legitimidade isso não é possível. Ao longo de quase três décadas desde a redemocratização, foi respeitada a lista tríplice enviada ao Ministério da Educação, cujo nome escolhido pela comunidade era respeitado, tradição baseada na cultura de participação de cada instituição e em seu acúmulo de forças, sendo que a lista é a expressão da vontade de cada comunidade.

A indicação feita por ministros ao longo dessas últimas décadas foi de referendar a escolha das comunidades universitárias sem interferir nelas na nomeação de seus dirigentes, sem atacá-las com cortes nos orçamentos, e ainda sem criminalizá-las ou persegui-las.

Na criação dos Institutos Federais em 2008, durante o governo Lula, avançamos com o tema da autonomia e na Lei que instituiu a Rede Federal de Educação, Ciência e Tecnologia. Foi assegurado que cada instituição enviasse apenas a nome da pessoa escolhida por sua comunidade. No entanto, desde que assumiu o governo, Bolsonaro tenta intervir e atacar as IFs assim como faz com as UFs.

Neste sentido, é fundamental que medidas sejam tomadas pelo poder público, afim de garantir a autonomia e o respeito à democracia, que este governo desconhece. Foi com este objetivo que protocolei na Câmara o Projeto de Lei 255/2019, que assegura a autonomia das instituições federais de ensino superior e o respeito à participação das comunidades universitárias na escolha de seus dirigentes. Além disso, na Frente Parlamentar Pela Defesas das Universidades Federais temos trabalhado arduamente para garantir a autonomia das instituições de ensino no debate sobre o orçamento de 2021. Sem orçamento também não existe autonomia.

O avanço do fascismo no Brasil, além de corroer a estrutura democrática de nosso país, tenta de todas as formas interditar e impermeabilizar o Estado. Por isso a constante tentativa de Bolsonaro para obstrução das instituições de educação. A agenda da cultura cívica de uma sociedade é pautada pelas instituições de ensino, pois elas, através das suas políticas de ensino, de pesquisa e de extensão, mobilizam os temas substanciais para o destino de um povo.

Na UFRGS não está em jogo a nomeação do Professor Rui e da Professora Jane, mas sim a democracia como substância de um país que tenta defender um legado democrático e reconstituir sua democracia pós-golpe de 2016.

(*) Maria do Rosário, Professora, Doutora em Ciência Política, Deputada Federal PT/RS

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Julgamento na Itália pode trazer primeira condenação de militar brasileiro por crimes na ditadura

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Instituto Vladimir Herzog

Um processo na Itália pode ser o primeiro a condenar em última instância um brasileiro pelos crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985). O caso iniciado em 2016 julga Átila Rohrsetzer por participação no sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver do cidadão ítalo-argentino Lorenzo Ismael Viñas Gigli em 1980, na fronteira de Paso de los Libres (Argentina) e Uruguaiana (Brasil). Rohrsetzer, à época diretor da Divisão Central de Informações do Rio Grande do Sul, pode ser condenado à prisão perpétua. A próxima audiência acontece nesta sexta-feira, 11 de setembro. Cabe ressaltar que não existem condenações no Brasil em relação aos crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura, a partir de uma interpretação equivocada da Lei de Anistia, que na prática tem servido à impunidade no país. Em sua luta por justiça para as vítimas de graves violações de direitos humanos, o IVH acompanha com atenção o julgamento e as possibilidades de desdobramento para a justiça brasileira.

Sobre o processo

O processo é desdobramento de um julgamento maior, envolvendo casos da Operação Condor – acordo político-militar de colaboração entre ditaduras latino-americanas para repressão e tortura sistemática, desenvolvido no contexto da Guerra Fria.  O processo principal, aceito pela Justiça italiana em 2007, investigou os crimes cometidos por agentes de ditaduras do Cone Sul contra cidadãos ítalo latino-americanos entre 1973 e 1980 a partir de denúncias de parentes de vítimas. Foram denunciadas 146 pessoas, incluindo quatro brasileiros. 33 tornaram-se réus. Oito ex-presidentes e militares sul-americanos foram condenados à prisão perpétua por assassinato. A denúncia contra agentes militares brasileiros levou à abertura de outro processo cuja sentença pode ser conhecida ainda este mês.

Quatro brasileiros foram acusados do assassinato do cidadão ítalo-argentino Lorenzo Vinãs Gigli, cometido no âmbito da Operação Condor: João Osvaldo Leivas Job, Carlos Alberto Ponzi, Átila Rohrsetzer e Marco Aurélio da Silva Reis. Todos integravam o aparato repressivo brasileiro.  Como Job, Ponzi e Silva Reis morreram durante o andamento do processo, Rohrsetzer tornou-se o único réu.

Sobre o caso

Lorenzo Ismael Viñas foi estudante de Ciências Sociais em Buenos Aires, na Argentina, onde ingressou no movimento estudantil em 1969. Em 1970, aderiu à Juventude Universitária Peronista (JUP). Em 1974, recém-casado com Claudia Olga Ramona Allegrini, esteve preso por nove meses no Presídio Villa Devoto, na capital argentina. Depois de libertado, mudou-se com a mulher para o México e, em seguida, para o Brasil. Voltou à Argentina em 1979 onde, em maio do ano seguinte, nasceu a única filha do casal.

Segundo a denúncia, diante das perseguições políticas o casal decidiu mudar-se para a Itália. Durante viagem rodoviária, em junho de 1980, Lorenzo Viñas foi interceptado na fronteira entre Argentina e Brasil, entre as cidades de Paso de Los Libres e Uruguaiana. O militante montonero desapareceu em 26 de junho de 1980, aos 25 anos, na região de Uruguaiana (RS). Nunca mais foi visto.

A última pessoa a encontrá-lo com vida, Silvia Noemi Tolchinsky, depôs em 2018 perante a Justiça italiana. Segundo a testemunha, ela e Viñas estiveram presos no centro clandestino de detenção do Campo de Mayo, propriedade do Exército argentino localizada na grande Buenos Aires. Em seu depoimento, relatou que Viñas lhe disse que estava preso há mais de 90 dias. Com ele estava a foto de sua filha, nascida 20 dias antes de seu sequestro. O Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade pela prisão e tortura de Viñas em 2 de agosto de 2005 em sessão na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).  O caso também consta do Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (2009, 2ª ed.) e foi denunciado pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep) da Argentina por meio do registro de nº 992. No Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgado em 2014, o nome de Rohrsetzer aparece relacionado à vítima.

Sobre o acusado

Átila Rohrsetzer é citado três vezes no volume 1 do Relatório Final da CNV.  Militar do Rio Grande do Sul, hoje residente em Florianópolis (SC), foi apontado como integrante do comando de uma série de aparelhos da estrutura repressiva da ditadura militar brasileira, entre eles o serviço de informações do Comando do III Exército (1967-1969); a Divisão Central de Informações (DCI), órgão com funções equivalentes ao Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), que atuava em parceria com as áreas de segurança e informações do III Exército (1970-1971); e o próprio DOI-CODI do III Exército (1974-1975).

O Relatório Final da CNV, elaborado a partir do relato de vítimas e testemunhas de graves violações de direitos humanos, além de pesquisa documental, relaciona Átila Rohrsetzer a crimes cometidos contra pelo menos oito pessoas, entre elas dois cidadãos ítalo-argentinos: Horacio Domingo Campiglia Pedamonti e Lorenzo Ismael Viñas Gigli.

O brasileiro será julgado no próximo dia 11 de setembro pela justiça italiana por participação no sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver de Lorenzo Viñas durante a ditadura militar brasileira e pode ser condenado à prisão perpétua. À época do crime, o réu Átila Rohrsetzer era diretor da Divisão Central de Informações do Rio Grande do Sul.

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Mais da metade das coordenadorias regionais da Funai já estão sob comando de militares

Vice-Presidente Hamilton Mourão, durante visita ao Centro de Instrucão de Guerra na Selva, na Amazônia. Foto: Adnilton Farias/VPR

Mais da metade das coordenadorias regionais da Fundação Nacional do Índio (Funai) estão sob comando de militares, da ativa e da reserva, incluindo aí oficiais do Exército, fuzileiros navais e paraquedistas. No início deste ano, de um total de 37 superintendências regionais, 19 estavam sob comando de militares, aparecendo nesta lista também um integrante da Polícia Federal, em Santa Catarina, e um empresário, em Rondônia. Essa lista pode aumentar nos próximos meses, pois 11 dessas superintendências regionais estavam, até o início deste mês, sem um coordenador regional titular.

A militarização da política indigenista no Brasil já havia sido prenunciada por Jair Bolsonaro desde a campanha eleitoral. O primeiro presidente da Funai indicado por Bolsonaro foi o general da reserva do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas, que acabou durando pouco no cargo. Ele deixou o cargo em meados de junho de 2019 após bater de frente com integrantes da bancada ruralista. Em seu lugar assumiu o delegado da Polícia Federal, Marcelo Augusto Xavier da Silva, considerado bem mais afinado com os interesses do setor ruralista. Ao longo dos primeiros meses do governo Bolsonaro, os militares foram progressivamente ocupando cargos em vários escalões do governo, processo este que segue em curso. Um levantamento realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em julho deste ano, apontou a presença de 6.157 militares da ativa e da reserva ocupando cargos no governo Bolsonaro.

Confira a relação de Coordenadorias Regionais da Funai sob comando militar (além de um policial federal e de um empresário):

Alto Purus – Rio Branco (AC) – José Ciro Monteiro Júnior (Fuzileiro Naval)

Juruá – Cruzeiro do Sul (AC) – Marco Antonio Gimenez  (Capitão do Exército)

Alto Solimões – Tabatinga (AM) – Jorge Gerson Baruf (Fuzileiro Naval da reserva)

Madeira – Humaitá (AM) – Cláudio José Ferreira (Tenente do Exército)

Manaus – Manaus (AM) – Francisco de Souza Castro (Tenente Coronel)

Médio Purus – Lábrea (AM) – Cássio de Oliveira Pantoja (Tenente do Exército)

Rio Negro – São Gabriel da Cachoeira (AM) – Auri Santo Antunes de Oliveira (Tenente do Exército)

Baixo São Francisco – Paulo Afonso (BA) – Nailton Alves da Gama (Capitão do Exército)

Maranhão – Imperatriz (MA) – Mozeni Ferreira da Cruz (Exército)

Campo Grande – Campo Grande (MS) – José Magalhães Filho (Capitão reformado)

Noroeste do Mato Grosso – Juína (MT) – Euclides Marques dos Santos Filho (Capitão do Exército)

Ribeirão Cascalheira – Ribeirão Cascalheira (MT) – Jucielson Gonçalves Silva (Fuzileiro Naval)

Xingu – Canarana (MT) – Adalberto Rodrigues Raposo (Fuzileiro Naval)

Baixo Tocantins – Marabá (PA) – Marcelo Mello de Menezes (Tenente do Exército)

Kayapó Sul do Pará – Tucumã (PA) – Raimundo Pereira dos Santos Neto (Paraquedista)

Guarapuava – Guarapuava (PR) – José Luiz Tusi Perazzolo (Capitão reformado)

Guajará Mirim (RO) – Euro Ferreira Guedes (empresário)

Passo Fundo – Passo Fundo (RS) – Aécio Galiza Magalhães (Coronel da reserva do Exército) (*)

Litoral Sul – São José (SC) – Eduardo Remus Cidreira (Polícia Federal)

Araguaia – Palmas (TO) – Osmar Gomes de Lima (Oficial do Exército)

(*) Exonerado no início de agosto. A Coordenação Regional de Passo Fundo é uma das que está sem coordenador titular.

Militarização da Funai e mineração em terras indígenas

O processo de militarização da Funai coincide com a paralisia do processo de demarcação de terras indígenas no país e com o avanço de propostas como a de liberação da mineração em terras indígenas, defendida pelo presidente Jair Bolsonaro e também pelo vice-presidente Hamilton Mourão. Uma reportagem publicada pelo jornal Folha de S.Paulo, nesta quarta-feira (9), destacou a declaração de Mourão, durante uma entrevista no dia anterior, que o Brasil “precisa parar de tapar o sol com a peneira e avançar na discussão de exploração de minérios em terras indígenas”. “Está na hora de avançar, de discutir isso, sem preconceitos. É muito melhor eu ter uma lavra concedida que eu sei que será explorada dentro das regras ambientais, que vai pagar imposto para o governo e que vai pagar royalties para a população daquela região, do que ter as ilegalidades que eu tenho de estar combatendo dia e noite sem parar”, disse Mourão durante conversa com o jornalista Carlos Alberto Di Franco.

Mourão, atualmente, coordena as ações do governo Bolsonaro na Amazônia, região que vem sofrendo um dos mais agressivos processos de desmatamento de sua história. Recentemente, um trecho do documentário “The Office”, que exibe os bastidores do Fórum Econômico Mundial, realizado na cidade suíça de Davos, expôs com crueza as intenções do governo Bolsonaro para a região. Nele, numa rápida conversa, Bolsonaro diz ao ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, que “adoraria explorar a Amazônia com os Estados Unidos”. No dia 5 de setembro, Dia da Amazônica, Bolsonaro voltou a atacar as ONGs ambientalistas chamando-as de “câncer” e disse que o Brasil “é o país que mais preserva seu meio ambiente”.

Os desejos nada ocultos de Bolsonaro e as declarações de seu vice em defesa da mineração em terras indígenas e da exploração econômica nestes territórios vêm despertando crescente preocupação internacional e já são objeto de várias campanhas em defesa da Amazônia. No início de setembro foi lançada a “Defund Bolsonaro”, uma campanha mundial que defende o corte de financiamentos às políticas do atual governo brasileiro e alerta para os impactos globais da destruição da Amazônia (veja abaixo o vídeo da campanha).

Os militares brasileiros estão no centro dessas denúncias e vem cerrando fileiras com o presidente Jair Bolsonaro na reação às campanhas internacionais que denunciam a destruição da Amazônia. Mais uma vez, Hamilton Mourão dá o tom dessa resposta, como fez em um artigo intitulado “A nossa Amazônia”, publicado no jornal O Estado de S.Paulo (28/08/2019): “Acusações de maus tratos a indígenas, uso indevido do solo, desflorestamento descontrolado e inação governamental perante queimadas sazonais compõem o leque da infâmia despejada sobre o País, a que se juntou, a nota diplomática do governo francês ofensiva ao presidente da República e aos brasileiros”.

(*) Publicado originalmente no Sul21 (10/09/2020).

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Covid-19 já matou 15 indígenas no RS; 11 na mesma aldeia kaingang, em Charrua

Reserva Indígena de Charrua: foto de 2019, durante celebração da Semana do Índio (Foto: Prefeitura de Charrua)

A população indígena kaingang, que vive no município de Charrua, localizado no norte do Rio Grande do Sul, está sendo duramente atingida pela covid-19. Na noite de terça-feira (8), foi confirmado o 11o. óbito, um homem de 83 anos, que estava internado na UTI do Hospital Santa Terezinha, em Erechim. A população estimada do município de Charrua é de 3.252 pessoas, sendo 1453 kaingang que vivem na Reserva Indígena do Ligeiro. Segundo a Prefeitura de Charrua, o primeiro óbito na comunidade kaingang ocorreu no dia 9 de julho. De lá para cá, mais onze indígenas morreram vitimados pela enfermidade causada pelo novo coronavírus.

Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), é o maior número de óbitos até aqui em uma terra indígena no Rio Grande do Sul. O levantamento do Cimi sobre o impacto da covid-19 nas comunidades indígenas do Estado, consolidado até o dia 4 de setembro, aponta um total de 766 casos positivos, com 15 óbitos, 41 casos em acompanhamento e 711 recuperados. De acordo com esses números, a taxa de mortalidade por covid-19 entre as comunidades indígenas do RS é de 51,8 (p/100 mil habitantes), enquanto a taxa de mortalidade entre a população do Estado é de 32,1 (p/100 mil habitantes).

O caso de Charrua, onde já quase 200 casos de covid-19, preocupa muito e é definido como uma “situação de calamidade pública” por Ivan Cesar Cima, membro da Equipe Frederico Westphalen e da Coordenação Colegiada do Cimi Sul. Para ele, o que está acontecendo em Charrua exige uma atenção urgente por parte das autoridades. “O que está acontecendo é reflexo das políticas do governo Bolsonaro para a saúde indígena, que estão reduzidas a um atendimento paliativo, com profissionais trabalhando sem equipamentos de segurança e com dificuldade para chegar a muitas comunidades por falta de recursos”, afirma.

Levantamento da Prefeitura de Charrua, atualizado em 9 de setembro (Facebook/Reprodução)

Ivan Cima alerta que a realidade das comunidades indígenas no Rio Grande do Sul, nesses tempos de pandemia da Covid-19, é ainda mais dramática, uma vez que se soma a um contexto de graves violências praticadas pelo Estado contra a vida desses povos. Assim como está acontecendo em outras regiões do país, aqui no RS, os números do contágio são alarmantes. “Já são mais de 760 casos, isso significa que cerca de 2% dos indígenas já contraíram o vírus, contra 0,98% do restante da população e que já foram perdidas 15 vidas”, resume.

O presidente do Conselho Estadual de Povos Indígenas no Rio Grande do Sul (Cepi), Deoclides de Paula, classifica como grave a situação na Reserva do Ligeiro e defendeu a necessidade de uma intervenção mais enérgica por parte das autoridades para evitar que as mortes de kaingang continuem acontecendo. “Acho que vai ter que haver um isolamento mais rígido lá, porque do jeito que está as mortes não vão parar. Não há planejamento algum nem recursos para evitar que isso continue ocorrendo”, disse Deoclides, que é cacique kaingang na Terra Indígena Kandoia, onde até agora não houve nenhuma morte causada pela covid-19. “Aqui a população é menor e fica mais fácil controlar, mas lá no Ligeiro tem quase duas mil pessoas. As lideranças têm que ter alguma ajuda de fora para fazer um isolamento mais forte”, assinala.

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) encaminhou, dia 25 de agosto, um ofício à secretária municipal da Saúde e Assistência Social de Charrua, Janete Derengoski, pedindo informações sobre os casos de covid-19 entre a população indígena do município. Entre outras informações, o CNDH solicita o numero de testes realizados no município, os resultados dos mesmos, o números de casos confirmados e o número oficial de óbitos de indígenas por covid-19. Assinado por Renan Vinicius Sotto Mayor de Oliveira, presidente do Conselho, o ofício pede que as informações sejam enviadas em um prazo de dez dias. Até o dia 8 de setembro, a Secretaria ainda não havia respondido a solicitação.

O Sul21 entrou em contato com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Pólo Base Passo Fundo, região na qual está localizada a reserva do Ligeiro, para saber as medidas que estão sendo tomadas para enfrentar o contágio de covid-19 entre os kaingang. A Sesai de Passo Fundo disse que não estava autorizada a prestar informações sobre o tema e que somente a superintendência da Região Sul, em Florianópolis, poderia se manifestar. O Sul21 também entrou em contato com Florianópolis, mas até o fechamento dessa matéria, não teve acesso a informações sobre o que está sendo feito a respeito.

(*) Publicado originalmente no Sul21 (09/09/2020)

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