Francisco, a mídia e o silêncio

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Por Ayrton Centeno

Cinco afirmações: 1) “A reforma agrária é, além de uma necessidade política, uma obrigação moral”; 2) “Preocupa-me a erradicação de tantos irmãos camponeses que sofrem o desenraizamento, e não por guerras ou desastres naturais”; 3) “Quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como qualquer mercadoria, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome”; 4) Solidariedade “é lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, de terra e de moradia, a negação dos direitos sociais e trabalhistas”; 5) “O desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos trabalhistas não são inevitáveis, são o resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que coloca os lucros acima do homem”.

Cinco indagações: 1) Quem disse isto? 2) Quando e onde tais palavras foram proferidas? 4) A quem foram direcionadas? 4) Trata-se de alguém importante ou não? 5) Em caso afirmativo, por que não foram divulgadas?

É de se duvidar que a clientela padrão daquilo que o cacoete ensinou a chamar de “mídia hegemônica” – embora tal denominação deva ser logo adaptada aos tempos que se anunciam, menos por razões políticas do que pelo advento de novos horizontes tecnológicos — tenha a menor ideia do que se trata. Porque a informação – essencial, como se verá – lhe foi sonegada por quem teria o dever de provê-la. Pagou e não recebeu a mercadoria prometida. Fraude. Como existe uma fábrica de silêncio laboriosa e permanentemente manufaturando brumas sobre o discernimento de seus usuários, a vítima perdeu-se no nevoeiro.

O autor das cinco assertivas é o Papa Francisco, figura máxima da Igreja Católica, religião que apascenta no Brasil o maior dos seus rebanhos: 123 milhões de almas no cômputo do IBGE. Seus argumentos repousam em discurso de oito páginas, 39 parágrafos, 309 linhas e 3.463 palavras. Cada um de seus pronunciamentos deveria, por óbvio, repercutir no país. Porque, então, seu verbo passou em brancas nuvens, mais alvas que as próprias vestes papais?

A mesquinhez informativa do baronato midiático vincula-se a dois fatores: 1) o conteúdo contundente da fala de Francisco; 2) o fato de ter recebido, na Santa Sé e no mesmo ensejo, um dos cabeças do MST, João Pedro Stédile, nome que deflagra urticária na plutocracia que opera os colossais canhões da informação em Pindorama. Logo ele, Stédile, que Veja pincelou em tintas escarlates de Belzebu numa das suas mais célebres e infames capas.

Para piorar o prognóstico, com Stédile estava Evo Morales, que fermenta ímpetos de general Custer na turma que habita o topo da pirâmide alimentar ao sul do Equador. Além do italiano de Lagoa Vermelha e do índio de Oruro, o pontífice ainda abriu braços acolhedores para papeleiros, recicladores, ambulantes, artesãos, pescadores, camponeses e operários. Mais de 100 entidades estiveram no Encontro Mundial de Movimentos Populares.

A reação à realidade – Papa recebe o inimigo – foi a nadificação do evento: nada aconteceu. Em vez de matérias contrariadas, nada. No lugar de editoriais furibundos, nada. O que expõe, não bastasse a violência voltada contra a essência do ofício e da função social que deve desempenhar, a imensa prepotência de quem se julga capacitado a revogar o real simplesmente acionando os mecanismos que detém para nulificá-lo. A presunção de definir, a posteriori, o que existe ou não. É a perfeita tradução de uma imprensa que carece de jornalismo e abunda em perfídia.

O encontro durou três dias — de 27 a 29 de outubro último — e nele o chefe mundial da Igreja Católica disse coisas sujeitas a rilhar de dentes em muitos aquários de redações. Stédile notou que “em dois mil anos, nenhum papa jamais organizou uma reunião desse tipo”. E admitiu que o discurso de Francisco está “à esquerda de muitos de nós”. Alguns exemplos da verve papalina, a começar pelo seu elogio à superação da democracia protocolar e à garantia de presença contínua do povo na vida democrática, algo que uma plêiade de congressistas acabou de torpedear no Legislativo:

Participação popular – “É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação protagônica das grandes maiorias, e esse protagonismo excede os procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras (…) nos exige criar novas formas de participação que incluam os movimentos populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum”.

Solidariedade – “É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns (…) É enfrentar os destrutivos efeitos do Império do dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de vocês sofrem e que todos somos chamados a transformar. A solidariedade, entendida em seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história, e é isso que os movimentos populares fazem”.

Terra – “Eu sei que alguns de vocês reivindicam uma reforma agrária para solucionar alguns desses problemas, e deixem-me dizer-lhes que, em certos países, (…) “a reforma agrária é, além de uma necessidade política, uma obrigação moral”. Não sou só eu que digo isso. Está no Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Por favor, continuem com a luta pela dignidade da família rural, pela água, pela vida e para que todos possam se beneficiar dos frutos da terra”.

Moradia – “Eu disse e repito: uma casa para cada família. Nunca se deve esquecer de que Jesus nasceu em um estábulo porque na hospedagem não havia lugar (…)”

Capitalismo – “Hoje, ao fenômeno da exploração e da opressão, soma-se uma nova dimensão, um matiz gráfico e duro da injustiça social; os que não podem ser integrados, os excluídos são resíduos, “sobrantes”. Essa é a cultura do descarte, e sobre isso gostaria de ampliar algo que não tenho por escrito, mas que lembrei agora. Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana (…)”

Guerra – “Há pouco tempo, eu disse, e repito, que estamos vivendo a terceira guerra mundial, mas em cotas. Há sistemas econômicos que, para sobreviver, devem fazer a guerra. Então, fabricam e vendem armas e, com isso, os balanços da economia que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente, ficam saneados (…)”

Pressagiando a fuzilaria crítica, Francisco se aligeirou: “É estranho, mas, se eu falo disso para alguns, significa que o papa é comunista”. E argumentou: “Não se entende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, teto e trabalho – isso pelo qual vocês lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da Igreja”.

Os papas locais da mídia submeteram Francisco a remédio mais amargo do que aquele administrado pela censura ditatorial ao seu antecessor Paulo VI. Na casuística do Brasil pós-AI-5, os censores aboletados na redação do carioca Correio da Manhã produziram uma pérola. Moveram canetas e tesouras para “melhorar” a mensagem natalina tradicionalmente endereçada pelo Papa aos católicos do mundo. Acontece que Paulo VI citava, lá pelas tantas, “os povos oprimidos”. Ora, como “povos” e “oprimidos” separados já era uma demasia, juntos eram algo simplesmente intolerável. E Paulo VI foi rasurado. Seu sucessor, por obra e graça do oligopólio que pretende nos ensinar a ver, comprar e votar, foi podado por inteiro.

Sobre maweissheimer

Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalho com Comunicação Digital desde 2001, quando foi criada a Agência Carta Maior, durante a primeira edição do Fórum Social Mundial. Atualmente, repórter no site Sul21 e colunista do jornal Extra Classe.
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