Ódio gera mais ódio: o conselho de Bisol e o papel da mídia no debate sobre o sistema prisional

A lição de José Paulo Bisol foi lembrada por Luciano Preto, da Promotoria de Justiça de Controle e de Execução Criminal de Porto Alegre. (Foto: Ramiro Furquim/Sul21)

A lição de José Paulo Bisol foi lembrada por Luciano Preto, da Promotoria de Justiça de Controle e de Execução Criminal de Porto Alegre. (Foto: Ramiro Furquim/Sul21)

Não é nenhuma novidade que o sistema prisional gaúcho e brasileiro é, de modo geral, um show de horrores que, não só não ressocializa os homens e mulheres nele trancafiados, como acaba funcionando como uma macabra faculdade de especialização no crime. O seminário realizado nesta quarta-feira (21), na Assembleia Legislativa, que debateu o relatório sobre o sistema prisional gaúcho, elaborado por iniciativa do deputado Jéferson Fernandes (PT) trouxe números atualizados sobre essa realidade no Estado, reunindo diferentes setores que trabalham com esse sistema: sindicato dos servidores, entidades profissionais, gestores públicos, parlamentares, Defensoria Pública, Ministério Público e Judiciário. Mas, à medida que o debate transcorria, ficava claro que faltava alguém importante. Essa ausência, aparentemente, não chegou a ser notada por ninguém.

Após ouvir atentamente vários dados e estatísticas do relatório sobre o sistema prisional, Luciano Preto, da Promotoria de Justiça de Controle e de Execução Criminal de Porto Alegre, pediu a palavra, dizendo que não iria citar mais nenhum número, pois eles já eram abundantes e esclarecedores a respeito do estado das coisas nas nossas prisões. Ao invés disso, o promotor relatou outro debate sobre o mesmo tema ocorrido há cerca de 20 anos, muito parecido com o desta quarta. Lá pelas tantas, contou, o ex-secretário de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, José Paulo Bisol, parecendo meio alheio ao debate que o cercava, pediu a palavra e disse: o que falta é amor! “Quero repetir aqui o que disse Bisol há 20 anos”, disse Luciano Preto. “Trabalhando todos esses anos no sistema prisional, quero dizer que nunca vi tanto ódio junto. Nós estamos cercados pelo ódio”.

Rodrigo, do Sindicato dos Servidores Penitenciários do RS, fez um relato sobre a realidade de um dos presídios do Estado, que ajuda a vislumbrar o caldo de cultura que alimenta esse ódio. O Estado não fornece papel higiênico para os detentos que usam, então, pedaços dos colchões para fazer sua higiene pessoal. Esses pedaços são arrancados, usados, jogados no lixo e acabam se amontoando em lixões e boeiros. No Instituto Psiquiátrico Forense (IPF), o leite foi cortado porque o Estado deixou de pagar os fornecedores, relatou outro servidor. Alguns pacientes tem que tomar remédios com café preto. Mas quem se importa com a situação dessa gente? A resposta a essa pergunta reintroduz a percepção de uma ausência neste debate.

Praticamente no mesmo horário em que esses temas eram debatidos na Assembleia Legislativa, um dos principais formadores de opinião da rádio com maior audiência no Estado, ao comentar a presença de presos em celas de delegacias de polícia, disse que tinha pena dos policiais que tinham que aguentar isso. “Os marginais que se danem”, acrescentou, dizendo que era melhor que fizessem greve de fome mesmo, pois assim o Estado não gastaria mais com eles. Esse formador de opinião reflete e realimenta um senso comum que vê todo o sistema prisional como um gasto absurdo e desnecessário. Bandido bom é bandido morto e o Estado não deve gastar dinheiro do contribuinte com ele. Isso é repetido diariamente, de diferentes formas e com diferentes inclinações, em diferentes canais e plataformas, fortalecendo uma percepção que aumenta a pressão sobre os governantes que desejam construir um sistema prisional diferente do inferno atual.

Esse discurso de ódio costuma estar acompanhado por alguns mitos. Um deles é que o Brasil é o país da impunidade. “O Brasil só é o país da impunidade para quem tem conta na Suíça”, rebateu Fábio Castro, vice-presidente do Sindicato dos Escrivães, Inspetores e Investigadores de Polícia do RS (Ugeirm). A realidade confirmada pelo relatório sobre o sistema prisional gaúcho confirma isso. A população prisional do Estado registrou um crescimento de 11% no último ano, índice muito acima da média histórica dos últimos anos. Ou seja, se prendeu mais e a violência não diminuiu. Pelo contrário, aumentou. Outro mito é frontalmente questionado aí: prender mais não significa diminuir a violência. No atual sistema prisional é justamente o contrário: prender mais fornece mais recrutas para as facções criminosas que dominam os presídios. O discurso do ódio contra a população carcerária, portanto, além de reacionário, é burro.

Será possível discutir a sério a mudança do atual modelo prisional sem incluir entre os protagonistas deste debate os formadores de opinião que conversam diariamente com milhares de pessoas? Qual é, exatamente, o papel da mídia na (de) formação e alimentação dessa percepção de que bandido tem que apodrecer na cadeia e limpar a bunda com pedaços do colchão mesmo? O impacto desse bombardeio midiático diário é irrelevante no processo de tomada de decisões das comunidades e dos governos?

A mídia costuma ser tratada como um elemento externo nestes debates, quando, na verdade, ela é protagonista, pois ajuda a formar diariamente a percepção da opinião pública. É possível combater a cultura de ódio mencionada pelo promotor Luciano Preto, sem debater esse assunto diariamente com as vozes que, ao mesmo tempo, refletem e ajudam a alimentar essa cultura? Quem acaba participando indiretamente desses debates, na aparência, são os profissionais que vão cobri-los para suas empresas. Os jornalistas, funcionários das empresas de comunicação que, em geral, são muito mal pagos e trabalham em condições estressantes. São estimulados a buscar uma “aspa bombástica” ou algum furo que possa catapultar a audiência e atrair novos patrocinadores. É um cenário surreal, com um certo caráter fantasmagórico. Há vozes que participam desse debate, mas estão fora dele, como ocorreu na manhã desta quarta-feira, com o tema da presença de presos nas delegacias de polícia. Essas vozes pairam sobre a chamada esfera pública e a atravessam completamente. Mas a “mídia” não é uma entidade fantasmagórica alheia a tudo isso que apenas contempla e relata o que vê.

Um sistema prisional degradado e degradante como o que temos diz muito a respeito de nós mesmos e da sociedade que ajudamos a moldar. Os comentaristas raivosos que julgam não ter nada a ver com isso se autodeclaram “protetores” da sociedade e vociferam diariamente contra os bandidos e a impunidade. Curiosamente, quanto mais alto falam, mais a violência aumenta, mais o ódio se manifesta. Mais ódio gera mais ódio. Era disso que falava José Paulo Bisol. Passou da hora de exorcizar esses fantasmas que assombram o debate sobre a segurança pública com vozes carregadas de ódio e ignorância.

Sobre maweissheimer

Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalho com Comunicação Digital desde 2001, quando foi criada a Agência Carta Maior, durante a primeira edição do Fórum Social Mundial. Atualmente, repórter no site Sul21 e colunista do jornal Extra Classe.
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Uma resposta para Ódio gera mais ódio: o conselho de Bisol e o papel da mídia no debate sobre o sistema prisional

  1. Excelente crítica. A violência é raramente discutida com seriedade, assim como o sistema prisional é geralmente tratado com preconceito. O sistema que nasceu marginal, parece assim se manter. O discurso do ódio prevalece na mídia que alcança a maioria das pessoas, e discussão sobre as alternativas para redução da criminalidade são restritas a alguns meios.

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