Passaporte para o inferno (II) – As longas sessões de cinema

Porto Alegre teve uma profusão dos hoje chamados “cinemas de rua”. (Foto: Cinemas de Porto Alegre Antigo -http://cinemasportoalegre.blogspot.com.br/)

Flavio Aguiar

Na última vez em que fui a Porto Alegre, em junho deste ano, visitei o Centro Cultural do ex-Cine Capitólio, na esquina da rua Demétrio Ribeiro com a Avenida Borges de Medeiros. Foi uma “forte emoção”. A estrutura da sala de cinema é inteiramente outra. Mas a bilheteria é a mesma, com os dois guichês, as escadas, e a fachada do prédio… Além disto, a finalidade é nobre e tudo me parece bem administrado.

Porto Alegre, como outras cidades brasileiras, teve uma profusão dos hoje chamados “cinemas de rua”, ou “de calçada”, em contraste com as salas especiais em recintos fechados, sejam centros culturais ou shoppings. Estes últimos, aliás, foram mais responsáveis pelo afogamento dos cinemas “de calçada’ do que a televisão ou a internet.

O cinema de rua era mais do que um lugar de entretenimento. Era um capítulo importante da formação cidadã. Em primeiro lugar pela sua disseminação. “Ir ao cinema”, desde a infância, implicava conhecer a cidade, ir ao seu encontro. Em 1960 Porto Alegre tinha quase 650 mil habitantes, bem menos da metade dos que tem hoje. E contava com mais de 40 salas de cinema, algumas delas em bairros bem afastados do Centro: Gioconda (Tristeza), Cine-Art e Belgrano (Belém Novo) OK(depois Real) (Sarandi), Tamoio (Cavalhada). É verdade que o conceito de “afastado do Centro” abrangia muita coisa: o cinema Garibaldi (depois ABC), na Venâncio Aires, era “afastado do Centro”. Idem o Avenida, na esquina da Venâncio com a João Pessoa, além do Marrocos no Menino Deus, o Scala, em Navegantes, o Ritz e o Rio Branco, em Petrópolis, o Castelo, a caminho do Partenon, o Vogue, na Independência, e o Moinhos de Vento, no bairro do mesmo nome. Cinemas como o Presidente, na Benjamin Constant, ou o Baltimore, na Osvaldo Aranha, na altura do Bonfim. Até o Capitólio não ficava “bem no Centro”, pois a esquina da Demétrio com a Borges já era o começo da Cidade Baixa, de um lado, e da Praia de Belas, do outro. Além de alguns mais não devo lembrar.

Os nomes dos cinemas combinavam elementos históricos com clássicos ou exóticos: Guarani, Garibaldi, Cacique, Marabá, Colombo, Carlos Gomes, Pirajá, Tamoio, Imperial; Capitólio, Apolo,  Coliseu, Talia, Rex, Roma, Orfeu; Ceará (para nós, na época, “exótico”), Marrocos, Oásis, Baltimore. Alguns tinham nomes mais “descritivos”, como o Central e o São João, ou neutros, como o Victória (assim, com C), na esquina da Borges com a Andrade Neves, ou ainda o Continente, na mesma Borges.

Os cinemas tinham marcas especiais: o Cacique, na Rua da Praia, tinha em seu interior imensos painéis evocando índios guaranis, um deles o lendário Sepé Tiarajú (tinha boleadeiras penduradas na cintura), e suas sessões começavam com a abertura da ópera de Carlos Gomes, também lendária. O Capitólio, que se chamava “Cine-Theatro”, assim com h, tinha frisas, camarotes, fosso de orquestra. Com o tempo, alguns destes cinemas, como o Carlos Gomes, se especializaram em filmes que hoje dizemos “pornô”, mas na época eram ditos mais prosaica mas mais sinceramente “filmes de sacanagem”.

A sala de exibição do Capitólio hoje em dia. (Foto: Divulgação)

Certa vez o Capitólio apresentou um filme-documentário sobre sexo. Com uma particularidade, que nunca mais vi: havia sessões só para homens e outras só para mulheres.

“Ir ao cinema sozinho” ou com amigos era um certificado de crescimento, sinal da passagem da infância de suspensório e calça curta (no verão) para a juventude, o uso do cinto e o fingimento de que a gente já era grande. Minha iniciação ao cinema se deu nos dois cinemas próximos de casa: o Capitólio e o Marabá. No primeiro vi meu primeiro filme. Nem me lembro sobre o que era, só que envolvia um menino com quem me identifiquei e um circo. No segundo vi “Branca de neve e os sete anões”, num momento em que ainda deu pra sentir medo da bruxa.

Não havia isto de sessões contínuas. Os cinemas tinham uma sessão à tarde, às 15h30, e duas à noite, 19h30 e 21h30. No domingo havia programas especiais.

O Avenida, por exemplo, apresentava um “matinal”, a partir das das dez da manhã, com desenhos animados da dupla Tom & Jerry. Ia até o meio dia. Era pra criançada. Já outros cinemas, como o Capitólio e o Marabá, tinham sessões duplas, chamadas de matinê, que começavam às duas da tarde e iam até às seis ou seis e meia.

Era assim: o começo da sessão era marcada por três pancadas sucessivas de um gongo, em outros cinemas, mais tarde, substituídas por apitos ridículos de uma campainha. Quando o gongo soava, uma gritaria intensa tomar conta do cinema. Aí começavam os comerciais: anúncios cuja posse a gente disputava, dizendo, numa ordem sucessiva, “este é meu”, “este é teu”, etc. Daí vinha o “jornal”, com noticiários. Lembro ter visto, pela primeira vez, o “chanceler Konrad Adenauer”, da Alemanha, e também, no Capitólio, um bando de barbudos enigmáticos para mim combatendo uma ditadura numa ilha distante, uma tal de Cuba. No fim do “jornal” sempre comparecia filmes de jogos de futebol, em geral no Maracanã, do Rio de Janeiro. Volta e meia os times gaúchos que lá jogavam, como o Internacional ou o Grêmio, eram ridicularizados, coisa que nos despertava grandes ódios. Mas no cinema Victória assisti as vitórias brasileiras na Copa de 58 – em resumo – pois naquela época não havia transmissão direta nem videotape.

Depois do “jornal” vinham os “trailers” – anúncios dos filmes que iriam ser apresentados no futuro. E aí começava o primeiro filme, de uma série de dois. Em geral, o primeiro filme era uma comédia: “O Gordo e o Magro”, “Danny Kaye”, “Jerry Lewis e Dean Martin” eram nossos artistas preferidos. Também os nacionais: Oscarito e Grande Otelo, Carmem Miranda, Adelaide Chiozzo, Ankito, Eliana, Anselmo Duarte e outra figuras-chave das chanchadas. Vi Grande Otelo fazendo o papel de Julieta, com Oscarito no de Romeu, em “Carnaval no fogo”.

Terminado o primeiro filme, vinha um intervalo de meia hora. E começava o segundo: um faroeste, que a gente chamava de “filme de mocinho”, um capa-e-espada, um filme de guerra, em que os alemães ou japoneses eram sempre grotescos com grunhidos de palavras ininteligíveis, ou – pior de tudo, que a gente detestava – um “filme de amor”, ou seja, um melodrama meloso que fazia a gente sentir que tinha perdido o domingo entre os beijos açucarados dos e das janotas protagonistas.

As cerejas do bolo eram sempre os “filmes de mocinho”, hoje chamados de “faroeste”. Havia torcida: quando a Cavalaria Americana aparecia no fim do filme salvando os pobres brancos cercados pelas hordas furiosas de índios no Forte Apache ou outro, uma gritaria ensurdecedora tomava conta do cinema, além do pateado que saudava gauchamente (acho eu) as patas dos cavalos.

No meio do caminho acontecia de tudo: a gente levava revistas em quadrinho e coleções de figurinhas para trocar, compravam-se balas, drops, balas de goma, pipoca, o diabo. Uma vez estourou uma briga feia no cinema Capitólio, acho que alguém passou a mão na namorada de outro alguém e metade do cinema se esvaziou pra acompanhar a refrega na rua.

Pois neste meio aparentemente tão prosaico aconteceram coisas fundamentais para minha formação, talvez de outras pessoas também.

Meu primeiro choque altamente voltaico aconteceu com o filme “Os Escravos da Coroa”, visto no Capitólio. Nem sei mais que escravos eram nem que coroa. Mas era alguns cavaleiros que lutavam contra algum rei. E aí, pasmem, os mocinhos morriam! Primeiro morria a mocinha, que se sacrificava, porque esperavam seu amado mocinho numa emboscada, e ela conseguia arrastar um fuzil para disparar um tiro alertando-o. Mas acontece que o fuzil se ajeitava no seu seio (ai! que eros me perdoe…) e o tiro de alerta a matava. Depois, na sequência, o mocinho morria baleado em outra emboscada. Aquilo me embasbacou. Então mocinhos morriam também! E um filme podia acabar mal! Bom, para consolo, na cena final, ele aparecia a cavalo diante de um quadro com ela ajeitando uma trança, dizia algo, e uma nuvem pesada os encobria…

Mas o mais importante veio com um filme que demorei mais de 50 anos para reencontrar. Chamava-se “Sitting Bull”, “Touro Sentado”, o famoso cacique Sioux. No meio do filme os Sioux acabavam com o Sétimo de Cavalaria, chefiado pelo não menos famoso General Custer, o “Longa Cabeleira”. Nos filmes de faroeste a gente sempre torcia pela Cavalaria, contra os índios. Pois bem, lá pelas tantas o cacique lascou esta frase: “Quando os brancos ganham, vocês chamam de uma vitória. Quando os índios ganham, vocês dizem que é um massacre”. Nossa! A minha cabeça deu um nó, virou, revirou, transvirou, e passei a torcer pelos índios. Com poucas vitórias, é claro…

Houve outros momentos memoráveis, alguns muito irônicos. Já pelos anos sessenta o P. F. Gastal, então o principal crítico de cinema de Porto Alegre, que escrevia na Folha da Tarde, se desentendeu com alguns dos diretores do Clube de Cinema, o grupo de maior prestígio na cidade, e resolveu abrir a página em que escrevia para os jovens cinéfilos. Entre eles, estávamos eu e o Emanuel Medeiros Vieira, então estudante de Direito, que passamos a escrever, às segundas, sobre filmes que víamos no domingo. Animados, fundamos o Centro de Estudos e Divulgação do Cinema, o CEDIC, de vida curta, mas profícua, se me permitem o palavrão. Organizávamos sessões no cinema da Reitoria da UFRGS e no cine Vogue. Numa das sessões, houve um desastre. Foi logo naquela em que alcançamos nosso recorde de público, com “Garrincha, alegria do povo”, de Joaquim Pedro de Andrade. Naquele tempo os filmes vinham em latas circulares que tinham de ser passadas na sequencia certa. E logo neste dia o projetor trocou a ordem das latas. Daí o filme virou uma mixórdia. Do meio do jogo do Brasil contra a Suécia em 58 pulávamos para uma entrevista do médico sobre as pernas do Garrincha, daí saíamos para uma parte do jogo contra a Rússia, exercícios no campo do Botafogo, voltávamos ao Brasil x Suécia… e assim por diante. Eu, que era o apresentador, o vendedor de entradas e o lanterninha, como se dizia, corri à sala da projeção, esmurrei a porta, sem resultado. Desconfio que o projetor estava entretido com alguma “estrela” de sua preferência e não abriu a porta. Desolado, pensei no fracasso do empreendimento. Mas na saída do cinema, ouvi um grupo de intelectuais em grandes observações sobre a genialidade do filme, a pertinência e o ritmo absorvente dos flashbacks e da quebra da linearidade narrativa… Dormi feliz naquela noite, depois dos tradicionais chás com conhaques que tomávamos na confeitaria ao lado, porque era inverno…

De outra feita exibimos um faroeste, acho que do Gordon Douglas (a memória pode me trair…). Era muito tradicional, com o foco nos dramas de relacionamento dos brancos dentro do forte Apache (ou seria outro?), cercados pelos fortes índios com seus gritos e carabinas levantadas e sovacos ao ar livre. No final do filme, chega, como era esperado, o reforço. Mas este era constituído apenas por uma carroça e uma dezena de soldados. Daí os Sioux ou Comanches ou Apaches se entusiasmam e partem para cima da brancaiada. Porém… os soldados levantam a lona da carroça e dentro aparece uma metralhadora com tripé e tudo, e a partir daí o massacre é maior do que o do Little Big Horn, em que a Cavalaria de Custer foi varrida do mapa.

Na saída, grupos discutiam a genialidade do filme e seu caráter “progressista”, dado o andamento dos dramas intra-forte Apache. Confesso que fiquei meio indignado, e argumentei: “e o massacre dos índios ao final, com a metralhadora?” Ao que um dos doutos debatedores me retrucou: “não conta, em faroeste índio é cenário”.

Pano rápido, como dizia o Millor.

Leia também: Passaporte para o inferno (I)

Sobre maweissheimer

Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalho com Comunicação Digital desde 2001, quando foi criada a Agência Carta Maior, durante a primeira edição do Fórum Social Mundial. Atualmente, repórter no site Sul21 e colunista do jornal Extra Classe.
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6 respostas para Passaporte para o inferno (II) – As longas sessões de cinema

  1. claudio b ruggeri disse:

    Maravilhoso relato! Me trouxe de volta uma vida inteira de 54 até 68. Suas crônicas me deram subsídios para completar o que repasso hoje aos meus filhos.Reavivaram minha adolescência e me tiraram lágrimas de saudades. Um forte abraço. Cláudio Ruggeri

  2. Maria Lucia disse:

    Oi, Flávio
    Que bom ler as tuas lembranças que são as minhas também!
    O meu primeiro filme assisti no Cine Ópera, levada pela minha avó, e era um norte-americano que tinha um velho escravo. Tão triste…
    Ia muito ao Vitória ver o Jérri Lévis (que é como se dizia na época, lembra?).
    O filme de circo que viste não era “O maior espetáculo da terra”? Assisti no Capitólio e é de 1952.
    Beijo, afilhadinho

  3. Flavio Aguiar disse:

    Agradeço os comentários… Esse filme do Capitólio não era “O maior espetáculo da Terra”, que vi em primeira mão (no Brasil) no Marabá. Era outro, que não lembro o nome. bjs F.

  4. Flavio Aguiar disse:

    Depois me dei conta de que o nome do Cine Continente não era tão neutro assim, era mais histórico, pois evocava o antigo “Continente de São Pedro”, ou simplesmente “Continente”, como era chamado o Rio Grande do Sul até os primórdios da Independência.

  5. Flavio Aguiar disse:

    E o primeiro romance de O tempo e o vento…

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