
Se usassem o termo mais adequado para descrever a “austeridade” que alardeiam seria outra mais reveladora.
Ayrton Centeno
Não sei vocês mas não aguento mais ouvir falar em “austeridade”. Nem em “reforma”. Cada uma dessas palavras sequestradas pelo étimo neoliberal encobre uma intenção: ferrar as nossas vidas. As da maioria. São o biombo atrás do qual se oculta o bandido. Negam uma intenção, dissimulam, iludem. Aos olhos daqueles dos quais são instrumento é preciso que seja assim. Se usassem o termo mais adequado para descrever a “austeridade” que alardeiam seria outra mais reveladora. No caso da sua percepção de “austeridade” – palavra austera porém prostituída – seria preciso falar em “arrocho” ou “exploração”. Ou, tão altissonante quanto porém com tintura mais vermelha, “espoliação”. Qualquer uma, porém, mais verdadeiras quanto ao conteúdo daquilo que o pior congresso que o dinheiro pôde comprar pretende impor à gentalha. À plebe nem tão rude assim porque, se o fosse, removeria a pontapés as aberrações que infestam o Planalto Central.
E “reforma”? Reforma-se algo para que nos preste melhor serviço. Aquele melhoramento na casa, o conserto de algum equipamento para que melhor realize a sua função, a viga que necessita ser trocada. Então, quando as corporações de mídia falam em reforma – e falam em uníssono – pretendem nos empurrar justamente esse peixe, o da vida melhor. Mas não é assim. Na sua mais justa tradução, a “reforma” não é acréscimo mas supressão. Não vem para melhorar mas para agravar. A “reforma” que nos impingem mais fielmente seria descrita como “estelionato” ou “roubo”.
Hoje, a ideia que a mídia, a banca e a horda de ladravazes que assaltou Brasília vende é a de que é preciso “austeridade” e “reforma” para “salvar o Brasil”. Tanto que o circense governicho temerário é apresentado pelo sujeito que brande o chicote no picadeiro como “de salvação nacional”. Seria hilário se não fosse trágico.
É sempre assim na novilíngua mercadista: a primeira arma que nos fere é a semântica. Atrás do paraíso prometido – existe algo de místico e religioso embutido nessa pregação — vem o inferno que, se quiserem, podem chamar de dura realidade. Funciona quase sempre na mesma maneira: 1) vende-se a ideia da pátria náufraga; 2) o responsável pela calamidade é o Estado; 3) é necessário puni-lo, fazendo-o murchar a porretadas; 4) vende-se no martelo o patrimônio do Estado que, depois, “até ficará mais eficiente”; 5) impõe-se o desemprego, o corte dos orçamentos da saúde, educação e outras áreas básicas que, depois, “até irão melhorar”. Quem tem idade ou memória sabe que esse foi o ramerrame dos aprendizes de feiticeiro e de seus fantoches midiáticos durante a era de ouro da privataria nos anos FHC. Aquele governo que quebrou o país três vezes. Cujos maiores malfeitos ainda aguardam o escrutínio da História.
Também não me venham falar em “reengenharia”, “flexibilização”, “desregulamentação”, “empregabilidade”, “fazer a lição de casa”, vocábulos usados para engambelar o próximo enquanto lhe extraem os dentes sem anestesia.
Na arenga da moda, “fazer a lição de casa” representa sacrificar os compromissos mínimos do governo em face da cidadania em prol do pagamento dos credores. Do ponto de vista da maioria – ou seja, daqueles, em uma democracia, votam e escolhem os governantes – “fazer a lição de casa” significa, sobretudo, honrar suas dívidas perante os cidadãos. Em outros termos: jamais retirar dinheiro da saúde, educação, moradia e segurança para entupir os cofres da banca.
É interessante perceber como o jargão neolibelês emula o da guerra. “Bombardeio cirúrgico” e “dano colateral”, por exemplo, também existem para ocultar o significado das ações bélicas e dos fatos que geram. “Bombardeio cirúrgico” chega a parecer algo bom, talvez uma intervenção a laser. “Recebi um bombardeio cirúrgico ontem”, diz um sujeito. “E aí, como foi?” quer saber outro. “Ótimo. Estou novo em folha”. E “dano colateral” poderia ser algo desprezível e passageiro. “Tive um dano colateral. Estava picando cebola e dei um talhinho no indicador”.
Mas a novilíngua não está aí apenas para nos martelar palavras. Quer nos acobertar aquelas outras que nos desvelam o real sentido das coisas. Fabricante do herbicida Roundup, a gigante Monsanto constatou que o termo “transgênico” provoca repulsa. Como o Roundup é usado justamente na lavoura de soja transgênica – cujas sementes a multinacional distribui — os publicitários da Monsanto bolaram uma peça na qual o Roundup é associado com as “forças da natureza”. Tão natural quanto. Nem uma sílaba sobre “transgênico” ou “veneno”.
No século passado travou-se uma batalha silenciosa nos jornais entre a indústria química e a cidadania. As empresas rotulavam como “defensivos agrícolas” seus herbicidas e inseticidas. Que consumidores e ecologistas chamavam de “agrotóxicos”. Na mídia, a simpatia patronal era, claro, pelo “defensivo”. Que os agricultores – suas vítimas diretas – sempre designaram como “veneno”. A custo, triunfou “agrotóxico”. Agora, um projeto do deputado Covatti Filho (PP/RS), da base do governo, tenciona “reformar” a lei de agrotóxicos para impor a expressão “defensivo fitossanitário”. O Brasil – ou seja, você, caro leitor – já é o maior consumidor mundial de venenos agrícolas. São sete litros/ano por habitante. A novilíngua, portanto, também mata.
Frente a frente com este quadro da dor, fico abismado de ver o comportamento passivo e anódino das esquerdas, de militantes a acadêmicos. Que repetem papagaiadamente tais palavras criminosas, chancelando e disseminando seu emprego. Cada vez que usamos “austeridade”, “reforma” ou outros produtos oriundos do mesmo laboratório de substâncias de alta toxicidade – mesmo de forma crítica — tornamos mais natural sua aplicação. Comprar esse pacote de maldades jamais nos deixará mais fortes ante o inimigo e sim mais débeis diante de sua argumentação. Estaremos jogando no seu campo e com suas armas.
Antes do final, um comentário: o pulsar do meu coração rebelde gostaria de intitular este artigo como “Austeridade é o caralho!” Contudo, suspeitando que o editor acharia demasiado atrevimento, troquei o caralho – que tantas vezes surge nos lábios desta reserva moral da nação que é Aécio Neves nas suas conversas com Joesley Batista à sombra da república – pelo peninsular “cazzo!” Que exprime a mesma figura, aqui mitigada pelo italiano, primo da nossa última flor do Lácio inculta e bela… E “cazzo!” escudado pelo ponto de exclamação, também explicita a mesma e necessária revolta.