A lança do Estado contra a civilização

Para AJD, Brigada fez uso exagerado da força, violentando direitos humanos de cidadão das mais diversas faixas etárias. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Associação Juízes para a Democracia – RS

A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, por meio do seu núcleo do Rio Grande do Sul, vem expressar repúdio e indignação com o modo como a Brigada Militar, na última quarta-feira, executou ordem de despejo, emitida pela justiça estadual para a Ocupação Lanceiros Negros, em prédio pertencente ao Estado do RGS, na cidade de Porto Alegre.

Servindo-se dos seus mais extremos e rigorosos instrumentos de repressão, operados por um enorme contingente de policiais, atuou com injustificada urgência, mais intensa que o comando recebido. Ao patrimônio público e ao ordenado fluxo do trânsito foi conferida importância e preocupação maiores que às demandas fundamentais de duas centenas de pessoas. Tendo em conta que o imóvel estava sem destinação pública há mais de uma décadas e que a ocupação datava de ao menos dois anos, era absolutamente desnecessário que a ação se desenvolvesse em uma noite fria, que a negociação para desocupação tenha sido meramente formal, abruptamente seguida do uso exagerado da força, violentando direitos humanos de cidadão das mais diversas faixas etárias.

A despreparada operação abusou do desrespeito à ordem constitucional ainda em vigor (pelo menos como regra escrita), pois a ação de realocação de pessoas, desconsiderou as peculiaridades que legislações especiais (Estatutos da Criança e do Adolescente, do Idoso e do Deficiente) ordenam sejam observadas. O lamentável e reprovável evento é mais uma evidente expressão do processo de reversão civilizatória do Estado brasileiro, inaugurada a partir do recente golpe imposto ao sufrágio popular, o qual se aprofunda cotidianamente, com ações concretas, desconstitutivas dos alicerces consagrados na Constituição Federal.

O mesmo Estado que não tem capacidade de prover o direito constitucional de moradia, não só não reconhece a legitimidade do direito de luta da cidadania, criminalizando-o, como também, através de sua estrutura de segurança faz com que ela apenas preserve conceitual patrimônio, em detrimento da garantia fundamental a uma vida minimamente digna. Para ter uma vida digna, imprescindível que haja um teto, o que, indiscutivelmente, tem de contemplar um abrigo para dormir, comer, cuidar dos filhos, tratar as enfermidades, medos e fragilidades, um lugar para amar, sonhar e sofrer – um espaço de referência pessoal e de resguardo da privacidade, um ninho para alimentar a esperança.

Ademais disso, é essencial não esquecer que as famílias despejadas são gente com a mesma dimensão valorativa que qualquer outra, são pessoas trabalhadoras. Eles recorreram à ocupação em lugar central, num imóvel há muito sem cumprir sua função social, como desdobramento inevitável de políticas urbanas antidemocráticas, discriminatórias e marginalizantes, mas também, vários deles, para refugiar-se do tráfico que escraviza o povo da periferia ou para escapar da vulnerabilidade das ruas e pontes.

A promoção de tamanho episódio pelo Estado e sua execução por uma estrutura que deveria servir ao público (e não com ênfase à defesa do patrimônio, mesmo que do Estado), revela uma completa subversão do ideário constitucional, exatamente por aqueles que têm o dever de preservá-lo e promovê-lo em todas as suas ações. Por fim, como resultado do uso da lança estatal, as dezenas de famílias que viviam no prédio público, que antes para nada servia, agora estão – novamente – sem teto. Já o frio amontoado de ferro e cimento está agora desocupado, mas nenhuma utilidade acrescentando ao patrimônio do Estado, que restou com seu passivo de políticas públicas ainda muito maior, além da estrutura pública de uma de suas polícias ainda mais desgastada – humana e estruturalmente.

Sobre maweissheimer

Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalho com Comunicação Digital desde 2001, quando foi criada a Agência Carta Maior, durante a primeira edição do Fórum Social Mundial. Atualmente, repórter no site Sul21 e colunista do jornal Extra Classe.
Esse post foi publicado em Direitos Humanos, Justiça, Política e marcado , , , , , , . Guardar link permanente.

Uma resposta para A lança do Estado contra a civilização

  1. Giovani disse:

    Que nota mais tímida essa. Se bem que no meio dessa retórica toda talvez tenha alguma referência ao JUIZ (ou JUÍZA) que autorizou a reintegração de posse. Não falar da truculência histórica das PMs, da BM em particular, não é nada banal. Não deveria ser também não falar da truculência do judiciário.

Deixe um comentário