Debate aponta falência da era dos automóveis e defende outro modelo de cidade

Terceiro seminário do ciclo de debates POA Mais debateu problemas da mobilidade urbana e possíveis alternativas ao atual modelo. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Terceiro seminário do ciclo de debates POA Mais debateu problemas da mobilidade urbana e possíveis alternativas ao atual modelo. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

No final da tarde de quinta-feira (23), Tássia Furtado levou cerca de 15 minutos, de bicicleta, para fazer o percurso entre a rua Bento Figueiredo, no Bom Fim, e a rua Coronel Fernando Machado, no centro de Porto Alegre. Raul Pont gastou quase uma hora para chegar ao mesmo local, de carro, partindo de sua residência, localizada em uma região próxima ao Bom Fim. A diferença de tempo serviu como exemplo, ao mesmo tempo, dos problemas de mobilidade enfrentados diariamente pela população da capital gaúcha e das possíveis soluções para esses problemas. O tema foi objeto do debate “Alternativas em Mobilidade Urbana e Sustentabilidade”, realizado nesta quinta-feira, no auditório da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Instituições Financeiras (Fetrafi). O encontro foi o terceiro do ciclo de debates POA Mais, promovido pelas fundações Perseu Abramo e Maurício Grabois, com apoio da Fundação Friedrich Ebert.

Além de Tássia Furtado, fundadora do Vulp Bici Café, idealizadora do Libélula Ações Transformadoras, do Biciponto e do Velopodcast, e do ex-prefeito de Porto Alegre, Raul Pont, o debate teve a participação do equatoriano Juan Manuel Mantilla, fundador da organização Ciudad Feliz (www.ciudadfeliz.org) , e do advogado Mauri Cruz, diretor da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e Secretário-executivo do Centro de Assessoria Multiprofissional (CAMP).

Vereador do município de Ibarra, no Equador, Juan Manuel Montilla fez um relato de algumas das experiências que vêm sendo implantadas em sua cidade e em outras localidades para buscar alternativas aos problemas de mobilidade, um fenômeno global em um mundo que, em 2050, terá cerca de 70% de sua população vivendo em cidades, segundo as estimativas mais recentes. Montilla citou, em primeiro lugar, o que não está funcionando em nenhum lugar: o modelo de mobilidade baseado em automóveis individuais, em ruas lotadas que levam, nas grandes cidades, à construção de cada vez mais viadutos que acabam não dando conta do problema. As alternativas a esse modelo, assinalou, já existem e podem ser vistas em países como Holanda, Dinamarca, Suécia, Nova Zelândia e outros, que adotaram políticas de humanização dos espaços públicos, investiram em transportes públicos e incentivaram o uso massivo da bicicleta como meio de transporte.

Não por acaso, disse Montilla, esses países lideram o ranking de qualidade de vida no planeta, sem possuir os maiores PIBs da economia mundial. Cidades como Londres, Paris e Nova York, destacou ainda o vereador equatoriano, estão mudando suas políticas de mobilidades para essa direção. A cidade de Paris está pagando um bônus para as pessoas que adotam a bicicleta como meio de transporte. Em Londres, há bicicletas gratuitas para quem quiser usar esse meio de transporte para ir trabalhar. A ideia é tratar os cidadãos que fazem essa opção pela bicicleta como cidadãos de primeira categoria. “Há intervenções simples, que não exigem grandes orçamentos, que podem dar grandes resultados. Temos diversos exemplos disso espalhados pelo mundo”, assinalou Montilla.

Mauri Cruz destacou que a natureza dos problemas enfrentados nas cidades hoje exige que os debates sobre suas possíveis soluções não sejam mais temáticos. “Temos que sair dos debates temáticos. Não é mais possível debater os problemas da mobilidade urbana de modo isolado, sem decidir antes que conceito de cidade queremos. As nossas cidades também estão vivendo a crise de transição do modelo de acumulação capitalista e enfrentando novos fenômenos na área de transporte, como está ocorrendo agora em Porto Alegre e em outras cidades brasileiras com o Uber”. Mauri Cruz defendeu a adoção do conceito de bem viver, que vem sendo adotado em países da América Latina como Equador e Bolívia, como um orientador para o debate sobre o modelo de cidade a ser buscado. Uma cidade que, no caso da mobilidade urbana, deve ser pensada não do ponto de vista da lógica do predomínio dos automóveis e do transporte individual, mas sim do transporte coletivo, do uso intensivo de bicicletas e da humanização dos espaços públicos. O diretor da Abong defendeu ainda a necessidade de reinventar o conceito de participação popular como condição para a construção desse novo modelo de cidade.

Tássia Furtado destacou o tempo que levou para chegar ao local do debate, em um horário de grande movimentação de trânsito, como um exemplo de alternativa que já está disponível. Ela citou dados de uma recente pesquisa com usuários de bicicleta, feita em diversas cidades brasileiras, que mostrou, entre outras coisas, que 37% dos entrevistados começaram a pedalar, não por uma questão de saúde, mas sim por que esse meio de transporte era mais rápido e mais prático. “Quem faz esse percurso da Bento Figueiredo até aqui em 15 minutos de carro neste horário?” – questionou. Essa opção não está livre de problemas, reconheceu Tássia Furtado. O principal deles é a educação no trânsito para o convívio com as bicicletas e seus usuários. Além de um trabalho intensivo em torno deste tema, ela defendeu a necessidade de mais infraestrutura para os ciclistas. “Eu cheguei aqui hoje, por exemplo, e não havia um bicicletário na frente do prédio. Ainda bem que me deixaram entrar com a bicicleta. As pessoas, especialmente os comerciantes, precisam se dar conta que uma vaga de carro equivale a cerca de 10 vagas para bicicletas, o que pode ser uma mudança boa inclusive para os seus negócios”.

Ex-prefeito da capital gaúcha, Raul Pont afirmou que os relatos de Juan Manuel Montilla, Mauri Cruz e Tássia Furtado mostraram a necessidade de mudar profundamente o atual modelo de mobilidade, dando primazia aos pedestres, ao transporte coletivo e a alternativas como bicicleta. “Eu saí às 17h50min do meu apartamento em uma região próxima a de onde a Tássia saiu. Levei cerca de uma hora para chegar até aqui. Isso ocorre todos os dias, com milhares de pessoas”. Para que essa mudança de modelo seja possível, destacou Pont, a cidade precisa recuperar seu poder de regulação. “Hoje, o predomínio do automóvel dá a ele o domínio das ruas. Para mudar essa situação, precisamos descentralizar a cidade, ampliar o acesso de serviços e de lazer e proporcionar um acesso mais fácil ao trabalho. Mas, para que tudo isso ocorra, será preciso comprar algumas brigas”.

Para Raul Pont, uma das principais armas para comprar essas brigas é recuperar a capacidade decisória de democracia participativa. “Hoje, ela se tornou um simulacro. Se dermos voz e direito de deliberação aos ciclistas, por exemplo, as coisas vão acontecer. Precisamos devolver à população o poder de decisão sobre o seu cotidiano. Essa prática não é uma coisa velha ou fora de moda. Pelo contrário, penso que é o que tem de mais moderno”.

(*) Publicado originalmente no Sul21.

Sobre maweissheimer

Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalho com Comunicação Digital desde 2001, quando foi criada a Agência Carta Maior, durante a primeira edição do Fórum Social Mundial. Atualmente, repórter no site Sul21 e colunista do jornal Extra Classe.
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