Uberlândia: Uma justa vitória popular em defesa da moradia

jacquesalfonsin200 Jacques Távora Alfonsin (*)

Mais de duas mil famílias, ao que se sabe, estavam ameaçadas de serem desapossadas das suas casas, situadas no campus do Gloria, da Universidade Federal de Uberlândia, por um mandado judicial a ser cumprido no início de dezembro vindouro.

A possibilidade de execução daquela ordem judicial dependia de uma reunião do Consun (Conselho universitário) daquela instituição de ensino-aprendizado, a ser realizada sexta-feira, dia 14 deste novembro, com o objetivo de confirmar, ou não, o seu interesse na dita ordem de reintegração de posse. De acordo com notícia publicada no jornal Correio de Uberlândia, edição do dia seguinte, aquela desgraça parece estar, felizmente, suspensa:

“Cerca de 300 pessoas que fazem parte do acampamento Professor Edson Prieto, no Campus do Glória, da Universidade Federal de Uberlândia, se reuniram em manifestação na porta da Reitoria da instituição. O objetivo era acompanhar a reunião do Conselho Universitário (Consun) dessa sexta-feira (14). Durante a reunião foi aprovada uma proposta que pede a suspensão da reintegração de posse da invasão, que fica ao lado da BR-050, na saída para Uberaba. Oito membros do Movimento Sem Teto Brasil (MSTB) formaram uma comissão para acompanhar a reunião. De acordo com uma das lideranças da manifestação, Frei Rodrigo Peret, o grupo na porta da Reitoria busca mostrar que o movimento está engajado no acompanhamento das negociações da área invadida do campus da UFU.

“Todas as partes estão favoráveis ao assentamento das famílias. Esperamos que o judiciário tenha essa compreensão”, disse. Oito membros do Movimento Sem Teto Brasil (MSTB) formaram uma comissão para acompanhar a reunião. Ao final da reunião, por unanimidade, o Consun aprovou a proposta que será encaminhada ao poder judiciário com o intuito de que a desocupação, que vem sendo planejada no Glória, seja suspensa para a negociação da área. De acordo com o vice-reitor da UFU, Eduardo Nunes Guimarães, a universidade e Município conversam sobre a instalação de uma área residencial no local. “De que adianta tirar todos de lá se não lugar para deixa-los? Eles são oriundos de outras invasões e isso mostra que o problema da habitação não foi resolvido na cidade”, afirmou. Existe um decreto federal que autoriza a venda da área, que foi avaliada em R$ 65 milhões.

Atualmente, segundo o MSTB, há quase 15 mil pessoas no acampamento e segundo a UFU existe um projeto vem sendo elaborado junto ao Município para urbanização da área.”

O fato evidencia como tantas tragédias anteriores, verificadas no país, em ações judiciais de reintegração de posse idênticas a desse campus, poderiam e deveriam ser evitadas. Multidões de gente pobre, aglomeradas em latifúndios urbanos e rurais, quase sempre sem outro uso do que o da reserva de valor, despidos de qualquer função social, em situação, portanto, de manifesta inconstitucionalidade e ilegalidade, seguidamente são tratadas como um rebanho, expulsas de suas casas e terras, sem garantia sequer de um destino futuro certo.

O grande número de soluções alternativas, modernas, legais e justas para se impedir consequências tão danosas como as derivadas de ordens judiciais como a que estava pendente de execução em Uberlândia, faz pensar nas razões pelas quais elas ainda são tão pouco utilizadas pelo Poder Judiciário. A palavra do vice-reitor da UFU, transcrita na notícia do Correio de Uberlândia, mostra o que se encontra realmente em causa, nas ações judiciais do tipo que tem multidão de pessoas pobres como vítimas: “

“De que adianta tirar todos de lá se não há lugar para deixá-los? Eles são oriundos de outras invasões e isso mostra que o problema da habitação não foi resolvido na cidade”.

A Universidade, então, teve a sensibilidade social de considerar não só a causa da injustiça social responsável pela realidade daquele povo ter de buscar teto em chão abandonado ou desusado , como o aberrante efeito de jogá-lo, com violência despropositada, sem garantia de destino certo e garantido.

Esse é o verdadeiro problema presente nessas ações possessórias. Enquanto elas continuarem a ser julgadas, sem outra disciplina que a das regras do Código de Processo Civil, ainda inspiradas, no referente à posse de imóveis, às velharias do Direito Romano, anterior a Jesus Cristo (!), a boa notícia do Correio de Uberlândia continuará sendo exceção.

Essas ações, pelo número de pessoas envolvidas, não podem mais ser tratadas como se interessassem apenas a autores/as e réus/rés, assim identificados/as dentro de um processo judicial. Há quem esquece o direito à moradia estar previsto no Título II (Dos direitos e garantias fundamentais), capítulo II (Dos direitos sociais), artigo 6º da Constituição Federal, como se tudo isso não devesse ser considerado em casos como o da reintegração de posse de Uberlândia.

Se um direito é fundamental, ainda mais social, passe o óbvio, ele se encontra no alicerce dessa casa maior, humana, de nacionalidade, cidadania e dignidade de todas as pessoas, pouco importando estar sendo ameaçado ou violado num determinado local ou numa determinada região.

Integrado a uma previsão legal dessa importância (direito humano fundamental), os conflitos que envolvam o direito à moradia, ainda mais quando exercido por numeroso povo, onde sempre se encontram crianças, idosas/os, doentes, por suas causas e seus efeitos, não podem e não devem ficar subsumidos a regras procedimentais e ao Código Civil, exclusivamente. Despachos administrativos ou judiciais, sentenças e acórdãos têm de levar em consideração atenta, no mínimo, além das disposições constitucionais, o Estatuto da Cidade (no caso de conflito urbano), o da Terra (no caso de lide rural), o da criança e da/o adolescente e o da/o idosa/o, em qualquer desses lugares.

Pelo visto em Uberlândia e em outros municípios brasileiros, as organizações do povo pobre começam a ter uma consciência desse direito bem mais fiel à Constituição Federal da que lhe dá o Poder Público, Judiciário inclusive, como está se comprovando naquela cidade .

Esse povo começa a cobrar da hipocrisia presente na interpretação do parágrafo único da Constituição Federal, o fato de ela confundir prestação de serviço com dominação, ignorar, autoritária e arbitrariamente, quem é, mesmo, o titular da soberania no Brasil. É de se esperar que esse precedente mineiro se multiplique em outras terras do país.

(*) Procurador do Estado aposentado, Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.

Sobre maweissheimer

Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalho com Comunicação Digital desde 2001, quando foi criada a Agência Carta Maior, durante a primeira edição do Fórum Social Mundial. Atualmente, repórter no site Sul21 e colunista do jornal Extra Classe.
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